A quem interessa reduzir a proteção do patrimônio geológico do Paraná


Proposta de lei para reduzir a proteção da área baseia-se em um único estudo realizado pela Fundação ABC, cuja missão é “desenvolver soluções tecnológicas para o agronegócio”.
A relação do homem com a natureza passou da coexistência em harmonia para a exploração desenfreada dos recursos naturais. Atualmente, observa-se total dominância e poder de decisão da humanidade sobre o patrimônio natural, sem nenhuma preocupação com o desequilíbrio ambiental que ficará como herança para as futuras gerações.
No Brasil, movimentos conservacionistas estão em constante conflito com os interesses do agronegócio, focados na geração de renda e aumento da produção, com o uso desenfreado de insumos agrícolas e soluções que visam a vantagem financeira rápida. E uma das graves consequências desse avanço desordenado de ações que buscam o lucro rápido para alguns é a conversão de gigantescas áreas nativas em pastagens e plantações.  Há também o extrativismo irregular em áreas de grande relevância biológica. Diariamente, coloca-se em risco a manutenção de espécies animais, vegetais e de ecossistemas inteiros de importância única no planeta.
Projeto que desprotege a escarpa é inconstitucional
O Projeto de Lei 527/2016, que tramita na Assembleia Legislativa do Estado do Paraná, propõe a redução da Área de Proteção Ambiental (APA) da Escarpa Devoniana, na região dos Campos Gerais, limitando-a a aproximadamente 32% de sua dimensão original. Um patrimônio natural, transformado em Unidade de Conservação (com muita luta) em 1992.
A Escarpa Devoniana possui milhões de anos de idade, apresenta formações geológicas espetaculares, imensurável riqueza de espécies e é fonte de recursos hídricos, sem falar da exuberante paisagem que atrai o ecoturismo para a região. Com a aprovação do projeto em questão, pode perder quase 70% de sua área para atender aos interesses econômicos de um pequeno grupo que busca o lucro imediato.
Tramita pela Assembleia Legislativa do Paraná um projeto de lei que pode acabar com a proteção de um monumento natural brasileiro único no mundo. O estado do Paraná é cortado por uma formação rochosa, uma espécie de degrau colossal, que separa o primeiro do segundo plantalto, marcado por trechos de vegetação única - e já bastante pressionadas por práticas de agricultura, mineração e plantio de espécies exóticas - como Florestas com Araucária e campos naturais, além de cavernas (algumas desconhecidas), rios e cachoeiras. É a Escarpa Devoniana. Essa beleza hoje tem status de área de proteção ambiental (APA), o que restringe algumas atividades mais destruidoras. Mas a proposta de lei acabaria com dois terços da APA, deixando a escarpa vulnerável.
O potencial da Escarpa é tão grande que recentemente um grupo de pesquisas investigou apenas 1 quilômetro da formação geológica e descobriu dez cavernas novas. A formação geológica tem 260 quilômetros de extensão, com várias atrações turísticas. As rochas que a sustentam foram formadas no perído devoniano, há 400 milhões de anos.
Apesar desse potencial, o projeto de desproteção da Escarpa segue na Assembleia. O projeto já foi votado pela comissão de Constituição e Justiça no dia 13 de dezembro do ano passado. No dia 10 de março houve uma audiência pública em Ponta Grossa, com muito tumulto, porque estudantes e demais pessoas interessadas em acompanhar as discussões foram impedidas de entrar no Teatro Ópera, onde o encontro o ocorreu, por falta de espaço. Agora, o projeto está nas mãos da comissão de Meio Ambiente. Depois, ainda será avaliado pela comissão de Agricultura e Cultura.
O projeto é inconstitucional, segundo Alexandre Gaio, promotor de justiça do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Proteção ao Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo do Ministério Público do Estado do Paraná. Para ele, mesmo que os deputados do Paraná aprovem a lei, há espaço para vários recursos.
Estudo recente descobriu 10 cavernas na escarpa
E o mais assustador nessa situação é que toda a proposta de lei baseia-se em um único estudo realizado pela Fundação ABC, que tem como missão “desenvolver soluções tecnológicas para o agronegócio”. Ou seja: o discurso da produção é colocado à frente de todas as questões que permeiam a conservação, com a justificativa de que a atividade rural é sempre sustentável e única fonte de geração de renda. O pretexto do progresso e do avanço econômico para a subjugação da natureza é obsoleto: não condiz com a crescente consciência ecológica da humanidade.
Algumas perguntas delicadas surgem neste momento: o que a natureza levou milhões de anos para construir deve ser destruído com a simples votação de um projeto? Quais as consequências disso para as futuras gerações? Se é, realmente, um projeto que atende às necessidades da população dos Campos Gerais, como defendem seus idealizadores, por que não se considera a opinião de especialistas de universidades e institutos, ambientalistas e demais pesquisadores? E por que não consideram o clamor popular que pede a manutenção da APA, além de sua ampliação e tombamento da escarpa?
Não é possível aceitar que a conservação do patrimônio natural dos Campos Gerais esteja à mercê dos interesses particulares de um grupo econômico. Ela é uma necessidade, um dever, que envolve a administração dos recursos naturais sem comprometer a estrutura e a riqueza biológica de determinada região. Está pautada, inclusive, em princípios constitucionais e, acima de tudo, éticos.
A inversão de valores observada atualmente nas questões ambientais, portanto, trará consequências graves em um futuro próximo. Lamentavelmente, será tarde demais para voltar atrás ao perceber que aquela opção era, na verdade, uma obrigação.
Um levantamento recente feito por pesquisadores do Paraná descobriu dez cavernas até então desconhecidas no estado. Elas foram encontradas no município de Ponta Grossa a partir de um estudo feito ao longo de três dias de trabalho de campo em 2016, mas só divulgado agora.
Os pesquisadores do Grupo Universitário de Pesquisas Espeleológicas (Gupe) investigaram uma área de apenas 1 quilômetro de extensão na região chamada Escarpa Devoniana. Ela é considerada o degrau topográfico que separa o Primeiro do Segundo Planalto paranaense. Lá, encontraram as dez novas cavernas localizadas nas paredes rochosas da Formação Furnas – a rocha que sustenta a formação.
Reduzir áreas protegidas não é bom negócio para a agricultura
Os resultados mostraram que a escarpa ainda é desconhecida e revelaram um imenso potencial turístico e ecológico escondido na região. Em linha reta, a formação se estende por 260 quilômetros no Paraná, no entanto, devido aos diversos cânions, fendas e festonados – que são contornos e reentrâncias típicas de relevos escarpados –, sua extensão total ultrapassa 500 quilômetros. É nela onde mais se manifestam as cavernas dos Campos Gerais, especialmente na porção que compreende os paredões rochosos situados na frente da área, em seu reverso e entorno – no interior dos cânions e fendas.
Apesar de tamanho potencial e riqueza, um projeto de lei que tramita na Assembleia Legislativa do Paraná e será votado ainda no primeiro semestre deste ano quer reduzir para menos de um terço o perímetro atual da Área de Proteção Ambiental (APA) da Escarpa Devoniana. A área é uma Unidade de Conservação Estadual de Uso Sustentável, criada em 1992 e situada na região dos Campos Gerais do Paraná.
Se aprovado, todo o patrimônio espeleológico da região ficará irreversivelmente desprotegido e ameaçado. A condição fará com que diversas cavernas fiquem fora da Unidade de Conservação e que seu regime de proteção seja profundamente modificado.
Quem se incomoda com um samba que fala de agricultura sustentável
Muito pouco ainda se sabe a respeito do patrimônio espeleológico da Escarpa Devoniana. O fato, entretanto, é que o potencial para novas descobertas de cavernas é enorme e as estatísticas atuais tendem a ser rapidamente multiplicadas com a realização de trabalhos de prospecção, cadastramento e pesquisa. Atualmente, o Paraná conta com 330 cavernas e as estatísticas crescem nos últimos anos, principalmente com os novos registros obtidos na APA da escarpa.
De acordo com as bases de dados do Gupe, do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Cavernas (Cecav), vinculado ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), e da Sociedade Brasileira de Espeleologia (SBE), 105 cavidades subterrâneas na área da escarpa e seu entorno imediato já foram identificadas. Porém, alguns trabalhos de certificação e licenciamento ambiental disponíveis na internet apontam a ocorrência de outras 15 cavernas já conhecidas, mas ainda não catalogadas nos cadastros oficiais. Com o total de 120 cavernas, a área concentra mais de um terço do patrimônio espeleológico do Paraná.
Ponta Grossa é o município que lidera esse ranking, seguido de Sengés, Piraí do Sul e Tibagi. Apesar de ter apenas uma caverna cadastrada, Jaguariaíva também possui grande potencial espeleológico, assim como os municípios de Piraí do Sul e Sengés, devido às características do relevo dessas regiões, com a presença de muitos cânions e fendas.
Além de cavernas, na região da escarpa localiza-se a maior cavidade subterrânea em arenito do sul do Brasil. O Sumidouro do Córrego das Fendas, em Ponta Grossa, tem 1.300 metros de desenvolvimento linear.
As cavidades subterrâneas da região da Escarpa Devoniana apresentam notável geodiversidade e biodiversidade. Recentes estudos em espeleotemas formados em rochas areníticas mostram a participação de micro-organismos na formação dessas feições, indicando que bactérias podem tanto dissolver como precipitar minerais.
A presença de espécies de invertebrados encontrados em cavernas da região ainda desconhecidos pela ciência também mostra a diversidade biológica dos ambientes. O exemplo mais notório é o crustáceo troglóbio – adaptado para viver exclusivamente em caverna –, encontrado na Caverna das Andorinhas, em Ponta Grossa. Este Amphipoda – o Hyalella formosa – foi o primeiro troglóbio identificado na Região Sul do Brasil. Trabalhos desenvolvidos em 2012 durante um projeto de pesquisa do Gupe mostraram a grande diversidade e abundância de espécies em cavernas situadas na APA da Escarpa. Na Caverna da Chaminé, em Ponta Grossa, por exemplo, foram identificados 54 espécies e 440 indivíduos em uma área de amostragem de apenas 61 metros.
Os trabalhos do Gupe mostram que os depósitos de matéria orgânica vegetal presentes no interior das cavidades subterrâneas, provenientes do guano (fezes) de morcegos e andorinhões e da vegetação nativa externa, também constituem fontes vitais para a existência e manutenção das espécies cavernícolas da APA. O tamanho e a qualidade do fragmento externo – entre eles florestas, capões de mata e campos – são fatores fundamentais na riqueza da fauna das cavernas, por isso o entorno desses ambientes deve ser protegido para que suas características naturais sejam mantidas.
A redução da APA por meio da aprovação do projeto de lei, portanto, é absolutamente equivocada e representa erro e retrocesso imensuráveis. A forte pressão causada pela agricultura e pelo florestamento comercial com espécies exóticas na área já vem causando impactos sobre as florestas e os campos nativos. A supressão e substituição da vegetação natural pelo cultivo, a falta de manejo e controle da dispersão do pínus, a instalação de drenos em campos brejosos, a destruição de Áreas de Preservação Permanente (APP) e o uso de agrotóxicos afetam diretamente a fauna cavernícola. Essas atividades também modificam o regime hídrico das cavernas e aumentam o transporte de sedimento para o interior dos ambientes, causando o entupimento de galerias.
A mineração na região da Escarpa Devoniana, com a extração de areia por meio do hidrodesmonte – técnica que consiste em fragmentar paredões de rocha arenítica com o uso de jatos de água de alta pressão –, é outro risco iminente às cavernas, podendo resultar na supressão total de diversas cavidades. A falta de exigências de estudos espeleológicos por parte do Instituto Ambiental do Paraná (IAP) e como condicionantes para a instalação de empreendimentos de alto impacto ambiental, como mineração, hidrelétricas, parques eólicos e indústrias, são fatores que aumentam o risco de destruição de cavidades subterrâneas na área.
As cavernas devem ser, portanto, protegidas, a fim de garantir o equilíbrio ecológico e a função geossistêmica que esses ambientes apresentam. Cavernas são locais de captação de águas superficiais, servindo de pontos de recarga do importante – porém muito esquecido – Aquífero Furnas, um grande manancial de águas subterrâneas da região dos Campos Gerais. A água é um recurso primordial, considerado o recurso do século e essencial para toda a sociedade. Há muito em jogo nessa proposta legislativa. Esperamos que, ao menos desta vez, os interesses particulares não se sobreponham aos da coletividade.
*Lia Maris Orth Ritter Antiqueira é bióloga, doutora em ciências, professora da UTFPR Ponta Grossa e líder do grupo de pesquisa em Conservação da Natureza e Educação Ambiental (Conea).
*Lucas Antiqueira é cientista da computação, doutor em ciências e membro do grupo de pesquisa em Conservação da Natureza e Educação Ambiental (Conea). 

Fonte: Lia Maris Orth Ritter Antiqueira e Lucas Antiqueira

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