HIDROPIRATARIA
Há anos o fantasma da
hidropirataria ronda cabeças no Brasil. Embora seja contada como uma história
quase policial, a hidropirataria é um delírio que, em vez de contribuir para
maior valorização da água, acaba desviando a atenção de problemas reais, como a
insuficiente cobertura da rede de água tratada para as populações amazônicas, o
índice mais baixo do Brasil.
A história, tema recorrente na
mídia, conta que grandes navios-tanque vêm até o Rio Amazonas, ora próximo a
Manaus, ora na sua foz, para roubar água do território brasileiro e levá-la
para países sedentos. À primeira vista, a hidropirataria nos revoltaria e
teríamos, evidentemente, de tomar providências contra a atividade. Entretanto,
essa história não encontra fundamento, posto que as leis da economia, de forma
indistinta, regem os interesses de todas as atividades comerciais.
Em valores atuais, 1 m3, ou 1
tonelada de água, custa entre US$ 0,25 e US$ 0,50 por dia para ser transportado
em navios de grande porte para granéis líquidos. Qualquer viagem para um dos
chamados "países com sede", localizados no Caribe ou no Oriente
Médio, por exemplo, demoraria vários dias, ao que se impõe uma realidade
importantíssima: o custo da água atingiria valores superiores a US$ 3 por m3
para uma viagem de 10 dias a 13 dias, mais os custos de tratamento para
torná-la potável, ao redor de US$ 0,40/m3. Esses valores nos mostram a
impossibilidade do comércio mundial de água bruta para abastecimento público
utilizando-se o transporte marítimo, porque os custos do frete de granéis
líquidos tornam a atividade inviável em distâncias superiores a 500 km.
A realidade que está resolvendo a
sede dos países é a dessalinização e o reuso que com tecnologia e escala,
operam a custos cada vez menores. Em Israel, três plantas dessalinizadoras
(Ashkelon, Hadera e Sorek), no modelo de parcerias público-privadas (PPPs),
fornecem água potável a 3,5 milhões de pessoas a um custo médio de US$ 0,60/m3.
Dessa maneira, Israel, dentro de alguns anos, não vai mais comprar água da
Turquia, o único caso conhecido de transporte de água em navios-tanque e que,
apesar da distância de apenas 600 km, está perdendo toda viabilidade econômica.
Existem hoje cerca de 380 plantas
de dessalinização em todo o mundo. No Brasil há apenas uma pequena unidade, funcionando
na Ilha de Fernando de Noronha, que opera ao custo de US$ 1/m3. É interessante
ressaltar que nem para Fernando de Noronha compensaria levar água em
navios-tanque.
Existe, sim, um comércio de água
entre países, de características muito limitadas, que ocorre por aquedutos,
como, por exemplo, entre Lesoto e África do Sul, Malásia e Cingapura, Turquia e
Chipre.
Por outro lado, o Brasil, o país
mais rico do mundo em água doce, começa a se beneficiar com a exportação de
água, mas não na sua forma líquida, e sim da maneira que se convencionou chamar
de água virtual, aquela que é exigida para a produção de bens agrícolas ou
industriais. Alguns produtos, como grãos, frutas, carnes, aço, papel, açúcar e
álcool, demandam grandes quantidades de água para serem produzidos e muitos
países já encontram dificuldades ambientais para a produção desses produtos e,
por isso, precisam importá-los de países com água e solo em abundância, como o
Brasil, por exemplo.
Provavelmente a história da
hidropirataria nasceu de uma confusão que se faz com a prática do uso da água
como lastro para os navios. Sem o lastro o navio não tem segurança,
navegabilidade nem equilíbrio para a viagem, operações e manobras necessárias.
A água de lastro é bombeada para dentro e para fora dos navios, de acordo com a
necessidade operacional. Essa prática rotineira tem trazido ao mundo problemas
expressivos por causa da introdução de organismos invasores que passam pelos
filtros da rede e das bombas de lastro. Atualmente, cerca de 5 bilhões de toneladas
de água são movimentadas por ano entre diferentes regiões do globo.
Estimam-se em US$ 100 bilhões por
ano os prejuízos globais causados por espécies invasoras na água doce levadas
de um continente a outro. Os Estados Unidos gastam por ano cerca de US$ 10
bilhões, principalmente por causa do mexilhão zebra (Dreissena polymorpha).
No Brasil, há cerca de dez anos,
foi introduzido o mexilhão dourado (Limnoperna fortunei), trazido por navios do
Sudeste Asiático à Bacia do Prata. Para tentar prevenir o flagelo mundial
provocado pela introdução de espécies exóticas a Organização Marítima
Internacional (IMO), a agência das Nações Unidas responsável pela segurança da
navegação e prevenção da poluição marinha, adotou, desde 2004, uma nova
Convenção Internacional para Controle e Gestão da Água de Lastro e Sedimento de
Navios.
Ainda que o transporte de água
doce por navio fosse economicamente viável, quem o fizesse estaria contrariando
o principal pressuposto dessa convenção, que é despejar no mar a água doce de
lastro trazida de qualquer país, antes de retornar, para evitar a contaminação.
Esforços têm sido intensificados
para fiscalizar a água de lastro em costas e portos brasileiros. Esperamos que
o Brasil possa, num futuro breve, ser citado como um bom exemplo para os demais
países, signatários ou não, da referida convenção.
Portanto, problemas reais de água
na Amazônia existem, sim, embora não despertem tanta atenção. Como, por
exemplo, o fato de que na área mais rica de água doce do planeta cerca de 40%
da população ainda não tem acesso a água tratada, o índice mais baixo no País,
cuja média é de cerca de 10%. Esse é, sem dúvida, um fato incômodo e real, que
deveria ser objeto de nossa preocupação.
Valorização
do Amazônia
Há muita pirataria e ilegalidade
na Amazônia. Haveria muito menos se houvesse melhor fiscalização. Mais
importante seria se houvesse melhor conhecimento, maior valorização do homem,
mais retenção de suas riquezas em proveito de quem a habita. Valorizando, a Amazônia
cuidaria de separar o joio do trigo.
Em vez de enfrentar fantasmas ao
meio-dia ou zanzar atrás de bruxas circulando com vassouras pelo espaço, ele
submeteria cada questão ao teste de consistência e à prova da verdade. Com a
lição aprendida, talvez se colocasse em condições de escrever uma história
melhor para a região. Sem fantasmagorias, mas também sem exploração.
Fonte: Antonio Felix Domingues - AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS
(ANA)
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