Agricultura familiar e sustentabilidade ambiental
A agricultura familiar é
constituída por famílias de agricultores que com o seu próprio trabalho vêm
produzindo alimentos. São duas características importantes a destacar: a) na
agricultura familiar é o próprio trabalho da família que é responsável pela geração
de valor, diferente da agricultura patronal, na qual há uma relação típica de
exploração de trabalho alheio de empregados ou trabalhadores assalariados; b) a
agricultura familiar é responsável pela maior parte da produção de alimentos,
principalmente por sua característica de integrar a produção e o consumo.
Agricultores familiares, portanto, ao mesmo tempo que produzem, eles também
consomem parte de sua produção. Esses alimentos podem ser de maior qualidade,
pois os produtores usufruem da sua própria produção e, para conseguir fazer com
que o trabalho da família possa ser empregado ou possa gerar valor durante o
ano inteiro, ele terá que ocupar-se com várias atividades. Nesse sentido, a
monocultura seria um problema para a agricultura familiar, porque na
agricultura familiar é necessário que o trabalho da família gere valor durante
o ano todo.
Muitos autores, quando se referem
à agricultura familiar, destacam sua pouca integração à lógica capitalista.
Alexander Chayanov, um dos autores clássicos no debate sobre agricultura
familiar, dizia que, na Rússia, os agricultores eram sujeitos sociais que não
necessariamente estavam integrados na lógica do capital ou na lógica que o
capitalismo coloca a maioria dos trabalhadores numa situação de exploração.
Alguns chegam a caracterizar isso como uma situação de produção pré-capitalista
ou, então, com uma parte integrada ao capitalismo e uma outra parte ainda não.
Isso não significa dizer que se trata de uma produção atrasada ou uma produção
que não esteja em condições de subsistir ou, inclusive, de funcionar
paralelamente à produção capitalista. Mas, é importante afirmar que, na
agricultura familiar, pelas suas características, não se trata de uma produção
tipicamente capitalista.
Na agricultura familiar há um
fenômeno historicamente conhecido como dependência dos agricultores em relação
a alguns fatores de produção. Um problema clássico da produção agrícola é a
terra, um recurso limitado, que não pode ser reproduzido. Terra, portanto, não é
capital, porque ninguém consegue produzir terra. Os agricultores têm acesso à
terra, a esse recurso natural e, a partir dele, conseguem produzir determinada
renda. A dependência ocorre em função da relação direta da agricultura com a
natureza.
A agricultura é uma atividade
dependente da natureza. Sem condições adequadas de solo, clima, água, enfim, condições
climáticas favoráveis, a base da agricultura deixa de existir. Além disso, há o
trabalho da família e um terceiro fator que, geralmente, é um fator limitante
para os agricultores familiares, pela estrutura agrária e da política agrícola
da maioria dos países: o acesso ao crédito e ao capital. A forma como os agricultores
têm conseguido acesso ao capital, têm os colocado numa condição de dependência
capitalista. Ao produzirem, os agricultores estão numa situação de concorrência
entre si, tendo em vista que a superprodução de cereais e de alimentos no mundo
faz com que os preços dos produtos agrícolas tendencialmente venham a baixar.
Por outro lado, os agricultores estão numa condição de submissão em função da
dependência de insumos que eles mesmos não podem produzir. As grandes
corporações agrícolas multinacionais têm monopolizado o fornecimento desses
insumos, inclusive aquilo costumeiramente chamado de tecnologia agrícola. Portanto, os agricultores estão confrontados
com uma situação de concorrência entre si no mercado internacional com a baixa
de preço dos seus produtos e, por outro lado, com o monopólio crescente do
fornecimento de insumos. As duas situações combinadas fazem com que, ao final,
o seu trabalho seja menos remunerado. Trata-se de uma nova forma de
reestruturação do capital ou uma de uma nova forma de divisão social do
trabalho, através da qual a renda ou o valor que é gerado na produção agrícola
vem sendo transferido para alguns grupos econômicos. Essa é a situação que,
historicamente, muitos intelectuais têm apresentado como uma tendência do
próprio processo produtivo agrícola: ao final sobrariam apenas alguns proprietários
e os demais seriam trabalhadores assalariados.
A agricultura familiar, que
integra a propriedade da terra e o trabalho, teria que se locomover ou se movimentar
de outra forma dentro dessa lógica para poder subsistir. Imaginemos, por
exemplo, que o cálculo econômico do agricultor familiar é diferenciado em
relação ao cálculo do agricultor patronal, não somente porque é a própria família
que está produzindo (e um capitalista jamais agiria com os seus empregados da
mesma forma como o pai e mãe agem com filhos e vice-versa), mas também porque
são eles mesmos que atuam no processo produtivo. Podemos citar aqui o exemplo
da aplicação de pesticidas que interferem sobre o meio ambiente onde se produz,
sendo esse, ao mesmo tempo, o meio ambiente onde essas pessoas vivem. Portanto,
na agricultura familiar, nós temos uma relação direta com a natureza e, por
isso, os problemas ambientais passam a ser um problema social. Assim, se
analisarmos a forma como o capitalismo hoje vem estruturando o processo produtivo,
o cálculo que os agricultores familiares vêm realizando teria que ser
diferenciado em relação ao cálculo econômico da agricultura patronal. Na
agricultura patronal, interessa uma redução de custos de produção para que, por
unidade produzida, se tenha maior valor gerado ou acumulado. Para efetuar essa
redução de custos, os empresários rurais têm utilizado tecnologias que reduzem
a força de trabalho necessária para se produzir determinada unidade de produção
(saca de soja, saca de milho, etc.). Para que um agricultor familiar possa
reduzir o tempo de trabalho necessário para se produzir algo, isso significaria
que ele teria que desempregar a si mesmo, seus filhos ou alguém da sua família.
E, com um agravante: essas mesmas pessoas continuariam consumindo. Se essas
pessoas continuam consumindo sem que o seu trabalho seja remunerado, nós termos
uma condição especial na agricultura familiar: um empobrecimento ou uma
auto-exploração, de forma que os que trabalham precisam trabalhar mais para
sustentar aqueles que somente consomem.
Portanto, na agricultura familiar
interessa que o trabalho que os agricultores integram no processo produtivo
seja remunerado e remunerado com um maior valor agregado. Para que esse valor
possa ser agregado, certamente o agricultor precisaria também industrializar a
sua produção. Poderíamos denominar isso de pequena manufatura, ou pequena forma
de industrialização até as formas mais sofisticadas que hoje também são
possíveis, o que também implicaria em uma organização cooperativa com outros agricultores
em uma mesma comunidade. Então, ao invés de um agricultor aumentar a sua área
de produção, o que normalmente os empresários rurais tem feito, diminuindo o
número de pessoas necessárias pra produzir, os pequenos agricultores, que não
podem simplesmente aumentar a sua área de produção sem diminuir a área de produção
de um vizinho, a alternativa seria fazer com que o trabalho investido na
produção possa ter mais valor. Uma das formas possíveis é conseguir agregar
valor à produção, industrializando e comercializando diretamente ao consumidor.
Uma outra forma é a possibilidade
de os agricultores familiares produzirem alimentos com maior qualidade. Faz
parte das características da agricultura familiar, produzir com maior
qualidade, porque as pessoas que produzem são as mesmas que consomem. Assim,
interessaria à agricultura familiar produzir alimentos com maior qualidade, com
base numa melhor relação com o meio ambiente, de forma que também se economize em
insumos, que são os fatores limitantes, pois implicam em investimentos de
capital.
O trabalho, aliado a
conhecimentos necessários para produzir alimentos com mais qualidade, poderia
favorecer o agricultor, de tal forma que aquele conhecimento especial que é
introduzido na produção, para que possa ser produzido de uma forma mais
saudável, possa, no consumidor final, ser mais valorizado. Isso é possível
agregando elementos da agroecologia na agricultura familiar. A agricultura
familiar, portanto, pelas suas características, por suas necessidades e por sua
perspectiva econômica e social, apresenta uma tendência maior de incorporar
elementos da agroecologia, porque essa seria uma forma de fazer com que sua
produção seja menos dependente de capital externo, de insumos (sobre os quais
algumas multinacionais têm o seu controle monopolizado) e introduzir no
processo produtivo conhecimentos da agroecologia, combinando-os com
conhecimentos tradicionais. Isso implicaria também em um processo de apropriação
de conhecimento existente, de valorização de conhecimentos já desenvolvidos e
de construção de novos conhecimentos.
Certamente, isso carece também de
uma nova forma de considerar a integração dos fatores de produção, a assim
chamada pluriatividade, ou então, multifuncionalidade da agricultura familiar.
A produção de alimentos pode ser integrada a outras atividades econômicas,
como, por exemplo, o turismo, ou, então, à produção de conhecimento na atividade
agrícola numa relação diferente com o meio ambiente. Essas diversas atividades
integradas, por sua vez, podem contribuir para que os agricultores possam ter
uma melhor ocupação do seu tempo de trabalho durante o ano. Isso não significa
apologizar ou então propagandear uma maior necessidade de trabalho. O trabalho
é a relação do ser humano com a natureza e com os outros seres humanos (que são
parte da natureza) de uma forma mais adaptada àquilo que a natureza consegue
oferecer em termos de fatores de produção. Ao invés de adaptar a natureza ao
processo produtivo é possível adaptar o processo produtivo à natureza, levando
em consideração que a natureza pode “trabalhar” para os agricultores. Isso não
significa que a natureza esteja trabalhando no conceito clássico de trabalho,
mas que, através de uma forma diferenciada de relação do ser humano com a
natureza, preservando o meio ambiente, é possível somar mais para o trabalho,
que o trabalho possa receber mais valor sem que ele tenha que ser, por isso,
mais penoso. Esse é um elemento central para a agricultura familiar, tendo em
vista que a penosidade do trabalho não interessa aos agricultores familiares,
da mesma forma que ela também não interessa aos agricultores empresariais
(nesse caso, se a agricultura mais penosa gerar mais custos).
No caso da agricultura familiar,
o trabalho penoso está relacionado com a qualidade de vida da família,
diferente daquela relação da agricultura patronal, na qual os custos de
produção seriam o agravante (e não a penosidade em função do sacrifício de algum
empregado ou trabalhador assalariado). Na agricultura familiar a qualidade de
vida está diretamente relacionada à forma como o trabalho é realizado e como
ele se relaciona com a natureza. Dessa forma, é possível evitar determinadas
atividades que são resultado de problemas técnicos gerados pelo processo de
modernização capitalista da agricultura. Como os agricultores familiares não
foram totalmente integrados ao processo de modernização capitalista da
agricultura (alguns sequer chegaram a fazer parte desse processo), há um espaço
de mobilização social, em que os agricultores familiares poderiam construir uma
forma diferenciada de construção da vida, sem necessidade de utilizar
determinados insumos, como fertilizantes químicos e agrotóxicos.
Os insumos químicos, sem
renovabilidade, foram introduzidos pela agricultura capitalista, colocando os
agricultores numa situação de dependência. No futuro a agricultura não pode
continuar dependendo desse tipo de insumos, porque esses recursos se esgotam.
Por outro lado, através da interação de animais e plantas ou da interação vegetal
com a vida animal é possível evitar determinados problemas técnicos que foram
causados exatamente pelo uso desses produtos químicos na agricultura. É
possível, por exemplo, controlar inços, que geram problemas significativos na
produção agrícola, através da compreensão de como as plantas interagem entre
si. É uma forma antiga de conceber a relação das plantas, diferente da
monocultura e que, inclusive, os povos indígenas realizavam. Na linguagem
científica isso recebe a denominação de alelopatia: compreender como plantas se
ajudam ou prejudicam, inclusive funcionando como herbicidas naturais. Da mesma forma,
no que se refere a pragas ou insetos que se tornam nocivos para a produção, se
sabe que as plantas são mais saudáveis se for evitado o uso de uma planta só: a
uniformização da produção. Com a diversificação da produção e a rotação de
culturas é possível reduzir a possibilidade de infestações de pragas da mesma
forma como os ataques de doenças.
Pelas experiências já existentes
com as tecnologias socialmente e ecologicamente apropriadas é possível reduzir
o tempo de trabalho necessário do agricultor no processo produtivo, sem
diminuir o seu valor gerado, tendo em vista que, para isso, o agricultor
precisa introduzir mais conhecimento. Assim, teríamos uma nova forma de
trabalho que agrega valor: a construção de conhecimento para resolver problemas
técnicos que a agricultura tradicional não tem condições de resolver. A agricultura
ecológica, na agricultura familiar, seria a forma mais avançada de tecnologia
na produção de alimentos. Ao agregar mais valor à produção, industrializando-a
e colocando-a no mercado de uma forma diferenciada torna-se necessário
articular a relação com o consumidor. Dessa forma, é possível produzir
alimentos mais saudáveis, para o mercado local. Numa primeira instância os
agricultores familiares seriam favorecidos, em função da melhoria de sua
própria qualidade de vida. Num segunda instância, aumentaria a produção de
alimentos para além das necessidades dos agricultores, contribuindo para a
melhoria da qualidade de vida de toda uma região, tendo o trabalho familiar
como base de uma nova relação com a natureza e o capital.
Fonte: Antônio Inácio Andrioli
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