PRESERVAÇÃO AMBIENTAL E JUSTIÇA SOCIAL
A comunidade científica não é
coesa em torno das causas das mudanças climáticas que nos assolam. Existe um
grupo que considera os movimentos de aquecimento da atmosfera como decorrentes
da própria trajetória da Terra ao longo das eras, algo vinculado aos ciclos
geológicos que intercalam, de tempos em tempos, resfriamento e calor. Um outro
grupo, por sua vez, aponta o ser humano como o catalisador dessas mudanças, o
verdadeiro responsável pelo início do atual ciclo de aquecimento. No entanto,
para ambos os grupos, não restam dúvidas quanto ao papel de protagonista do
homo sapiens na aceleração das transformações, por sua influência no meio
ambiente, cada vez maior e mais impactante, seja como agente preponderante ou
auxiliar das mutações.
É sobre essa convicção científica
que se assenta a necessidade de introduzir as dimensões jurídicas e sociais do
debate ambiental, a partir da compreensão de que o conceito jurídico de
cidadania global pressupõe que sejam equacionados os desequilíbrios sociais
existentes atualmente. Em outras palavras: não há como se falar em equilíbrio
ambiental no planeta sem antes debatermos os meios de superar as desigualdades
sociais existentes na geopolítica global.
A ONU, um dos organismos
internacionais que podem atuar decisivamente para o equilíbrio sociopolítico e
ambiental, produziu em 2009 um estudo sobre desastres climáticos no mundo
ocorridos entre 1975 e 2007 (“Risk and Poverty in a Changing Climate”, ou
“Risco e Pobreza em Mudanças Climáticas”). A esperada conclusão foi que as
populações dos países pobres e de governos instáveis ou com instituições menos
sólidas sofrem mais danos —e mais profundos e permanentes— resultantes de
desastres climáticos do que as populações de países desenvolvidos. A combinação
de instituições frágeis, desigualdades sociais e baixo nível de desenvolvimento
amplia as consequências das calamidades.
Ora, se a ação do homem é
relevante para acelerar os processos de aquecimento global e os desequilíbrios
ambientais e se as nações menos desenvolvidas sofrem acentuadamente mais com
esse quadro, é preciso atuar em duas frentes de maneira concomitante:
1. Trabalhar no desenvolvimento
tecnológico e social para mitigar os efeitos da ação do homem sobre o meio
ambiente;
2. De forma especial e mais urgente,
alterar os padrões de consumo no mundo.
A primeira frente é abordada com
frequência e muita propriedade pela maioria esmagadora dos ambientalistas, em
propostas de ação que vão desde identificar novas fontes de geração de energia
limpa, formas de diminuição do ritmo de crescimento populacional e até
otimização dos detritos para obter o mínimo possível de lixo ao final da cadeia
produtiva. A segunda frente, no entanto, é menos levantada. Há um problema de
justiça distributiva no mundo, e a verdade é que não temos como consumir todos
no padrão das nações desenvolvidas, porque manter esse padrão e ritmo é
perpetuar as implicações sociais nocivas, detectadas pelo estudo da ONU, nos
países em desenvolvimento e não desenvolvidos. Em essência, se o ideal de desenvolvimento
igualitário entre primeiro e terceiro mundo for realizado, se todos consumirmos
no padrão médio de consumo da população primeiro mundista, os recursos naturais
do globo deixarão de existir.
Não podemos mais travar o debate
ecológico sem absorver o inescapável prisma social. Da mesma forma, pensar as
políticas ambientais doravante é ter de modificar os níveis de consumo do mundo
globalizado. Buscar mecanismos de frear a degradação ambiental sem avançar
sobre como iremos redistribuir a renda e o consumo mundiais é refletir sobre
parte do problema, produzindo uma ideia de sustentabilidade injusta e não
cidadã. Porque não podemos mais, como humanidade cidadã, permitir que o
hiperconsumo nos países desenvolvidos se dê à custa da miséria dos subdesenvolvidos.
O jornal britânico Daily Mail
publicou, em 2010, pesquisa que evidencia essa desproporção de consumo. Em
média, as mulheres britânicas têm 12 peças de roupa que não são usadas há anos.
Juntar todos os guarda-roupas femininos do Reino Unido resulta em R$ 14,3
bilhões (5,4 bilhões de libras) inutilizados. O exemplo do guarda-roupa
feminino serve também para os homens, pois o nível do consumo mundial hoje em
dia não é veleidade exclusiva a um dos gêneros, é difundido a quaisquer que
sejam os sexos, preferências sexuais, profissões, faixa etária etc. Muito do
que consumimos é composto de produtos que não vamos usar. E isso se dá à custa
da fome nos rincões mais pobres do mundo, na Ásia, na África, na América
Latina, no Brasil, ao menos quando pensamos a distribuição dos patamares de
consumo na geopolítica global face a um ecossistema de recursos naturais
limitados.
Se não imbuirmos o debate
ambiental com a perspectiva de redistribuição de renda e consumo no mundo, se
não buscarmos equilíbrio do ser humano com o uso dos recursos ambientais e
também com os demais seres humanos, estaremos buscando um modelo de preservação
ambiental que, mais uma vez na história, privilegiará os de sempre. Adotando
políticas de pura e simples interrupção nos níveis de crescimento de consumo,
sem que junto sejam produzidas formas de mitigação nas desigualdades deste
mesmo consumo, estaremos condenando a maior parte da humanidade a pagar com a
fome pela manutenção dos recursos naturais necessários ao sustento do consumo
irracional dos povos privilegiados. Destarte, estaremos distante do que se pode
entender por cidadania global.
Debater como controlar o
aquecimento global e outras questões que impliquem na preservação da vida no
planeta é, portanto, rediscutir as relações sociais e de poder no plano
internacional. Devemos estancar os padrões de consumo global, redistribuindo
pelo globo seus patamares, através de políticas compensatórias do primeiro
mundo ao terceiro, de molde a equalizar o consumo global em patamares mais
igualitários e menos agressivos ao meio ambiente. Sustentabilidade real não há
sem justiça social global.
Fonte: Pedro Estevam Serrano
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