Racismo Ambiental
O que é
isso
A expressão suscita estranheza e
há quem ache que teria sua dose de oportunismo e "apelação". Mas olhe
a cor da pele de quem mora nas favelas sobre os morros, nos beira-rios e beira trilhos;
olhe a cor da pele de expressivo número dos corpos levados pelas enchentes,
soterrados pelos deslizamentos.
Racismo é a forma pela qual
desqualificamos o outro e o anulamos como não semelhante, imputando-lhe uma
raça. Colocando o outro como inerentemente inferior, culpado biologicamente
pela própria situação, nos eximimos de culpas, de efetivar políticas de resgate,
porque o desumanizamos: "ô raça!"
Nesse sentido, no caso
brasileiro, tornamos como "raça", e inferior - ô raça!! - também o
retira1nte, o migrante nordestino, que passará a ser percebido como o "homem-gabiru"
, o "cabeça-chata", o "paraiba", o invasor da
"modernidade metropolitana". Assim, nosso racismo nos faz aceitar a
pobreza e a vulnerabilidade de enorme parcela da população brasileira, sua
pouca escolaridade, simplesmente porque naturalizamos tais diferenças,
imputando-as a "raças".
"Racismo ambiental" é
um tema que surgiu no campo de debates e de estudos sobre justiça ambiental, um
clamor inicial do movimento negro estadunidense e que se tornou um programa de
ação do governo federal dos Estados Unidos, por meio da EPA-Environmental Protection
Agency, sua agência federal de proteção ambiental. O conceito diz respeito às
injustiças sociais e ambientais que recaem de forma desproporcional sobre
etnias vulnerabilizadas. Como escreveu Tania Pacheco no blog sobre racismo
ambiental, ele não se configura apenas por meio de ações que tenham uma
intenção racista, mas igualmente por meio de ações que tenham impacto racial,
não obstante a intenção que lhes tenha dado origem. "Injustiça
ambiental" é definida, complementarmente, como "o mecanismo pelo
qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a
maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa
renda, aos grupos sociais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos
bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis."
(Declaração da Rede Brasileira de Justiça Ambiental).
O movimento por justiça ambiental
iniciou-se entre os negros estadunidenses, no início da década de 1980, no
desdobramento das lutas pelos direitos civis, que por sua vez tiveram seu
momento de ápice na década de 1960. A população negra de Warren County, na
Carolina do Norte, iniciou um movimento contra a instalação de um aterro de resíduos
tóxicos de PCBs (bifenil-policlorado) em sua vizinhança. A EPA fazia um trabalho
de retirada de solos contaminados - os chamados 'clean-ups'. Essa terra contaminada
não desaparece, tem de ficar depositada em algum lugar e a EPA escolheu como um
desses lugares a localidade negra de Warren County. Pouco a pouco, o protesto
foi crescendo, até que uma grande manifestação levou a centenas de prisões e ampliou
para além das fronteiras do estado o debate sobre a questão. A disseminação da denúncia
e dos debates culminou com a descoberta de que três quartos dos aterros de resíduos
tóxicos da região sudeste dos Estados Unidos estavam localizados em bairros habitados
por negros.
A EPA foi receptiva, montou uma
comissão para estudar o caso, mas com outro nome, pois a expressão 'racismo
ambiental' foi considerada muito forte, poderia ser um gatilho a semear
discórdias, dividiria quando era tempo de somar etc... Seria somente em 1991
que a justiça ambiental nasceria de fato, a partir da I Conferência Nacional
de Lideranças Ambientais de Pessoas de Cor (First National People of Color Environmental
Leadership Summit) Realizada em Washington, com mais de mil participantes
norte-americanos e com a presença de convidados de 15 países, a Conferência
ampliaria a noção de justiça ambiental para questões relativas à saúde, ao saneamento,
ao uso do solo, à segurança no trabalho, ao transporte, à moradia e, finalmente,
à participação da comunidade nas decisões referentes às políticas públicas.
Ampliou-se também para a inclusão de latinos (chicanos, portoriquenhos, todo o
leque de cores que um w.a.s.p2. de boa cepa despreza e que define como outras
raças!). Em 1992 publicou-se o primeiro exemplar do People of Color
Environmental Groups Directory (Catálogo dos grupos ambientais das pessoas
de cor).
Em 2001 a Universidade Federal
Fluminense - UFF/PPGSD-LACTA, a FIOCRUZ/CESTEH e a FASE/Projeto Brasil
Sustentável e Democrático - organizaram um colóquio sobre Justiça Ambiental.
Vieram Robert Bullard e Beverly Wright, sociólogos e ativistas do movimento
negro estadunidense, Adeline Levine, socióloga estadunidense (da SUNY, State
University of New York at Buffalo) que escreveu sobre o caso de contaminação em
Love Canal; vários outros pesquisadores de cá e de lá. Na preparação deste
encontro, discutimos entre nós se o tema seria 'racismo ambiental' ou 'justiça
ambiental'. (Retomávamos um debate que os livros nos contam, realizado há
décadas no Brasil e que discutiu se os operários negros deveriam se identificar
como negros ou como operários: raça ou classe?) A opção foi por 'justiça
ambiental', tema mais amplo, agregador (evitaríamos ser vistos como quem quer
imitar os EUA e incluir aqui contendas que não teríamos), era uma expressão
mais fácil de explicar etc...
Fizemos o encontro e seu
resultado foi publicado em livro pela Relume-Dumará, sob o titulo Justiça
Ambiental e Cidadania. Em novembro de 2005, a Universidade Federal Fluminense -
UFF/PPGSD- LACTA e a FASE/Projeto Brasil Sustentável e Democrático realizaram
outro encontro, desta vez focando o tema do 'racismo ambiental' e trazendo
gente dos movimentos. Foi o I Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental.
Este encontro juntou pesquisadores da academia, gestores federais e ativistas
representantes de movimentos sociais negros e indígenas, para discutir um tipo
de desigualdade e de injustiça ambiental muito específico: o que recai sobre
negros urbanos, ribeirinhos, extrativistas, geraizeiros, pescadores,
pantaneiros, caiçaras, vazanteiros, ciganos, índios, pomeranos, comunidades de
terreiro, faxinais, quilombolas, etc. - que têm se defrontado com a "chegada
do estranho ", isto é, dos grandes empreendimentos desenvolvimentistas que
os expelem de seus territórios, desorganizam suas culturas, forçando-os a
conviver com um cotidiano de envenenamento e degradação de seus ambientes de
vida ou empurrando-os para as favelas das periferias urbanas, onde se somam aos
'paraíbas' e negros nas favelas e nas periferias. A intenção era aproximá-los e
estimular uma bandeira comum, que se
tornassem visíveis os invisíveis, os sem importância das cidades, dos sertões,
dos cerrados e das florestas, os que são 'naturalmente inferiores'. Este novo
encontro gerou também um livro, editado pela Fase, sob o título I Seminário Brasileiro
contra o Racismo Ambiental. E gerou um grupo de trabalho na RBJA. Em 2006 a
Universidade Federal do Ceará realizou o I Seminário Cearense contra o Racismo
Ambiental.
A expressão 'racismo ambiental'
ganhou alguns movimentos quilombolas, mas não emplacou nem repercutiu no
movimento negro metropolitano acadêmico e a academia a desprezou. Por que? Raças
não existem, a ONU declarou ao final da II Guerra Mundial, para colocar uma
pedra nas discussões e perseguições aos judeus. Realmente não existem: temos todos
dois olhos, uma boca, os mesmos tipos sanguíneos, etc. Mas existe a crença de que
elas existem, ou seja, o racismo existe. As pessoas são discriminadas por serem
pobres, donde vulneráveis e brutalizadas. 'É que elas são pobres e exploradas'
dizem os que discordam em ver nisso racismo, não é por serem negras, índias ou
do nordeste. O movimento negro combate o racismo, mas reafirma a raça, agora
com valor positivo e assim realimenta a crença de que raça existe. A academia
prefere definir a questão como questão de classe. Todavia, os pobres são
negros, índios, nordestinos. Por conta da crença em raças, ficam aparentemente
justificadas a normalidade e naturalidade do fato de determinadas pessoas
conviverem com lixo, se soterrem nas enxurradas e sejam expulsas de seus
lugares em nome do desenvolvimento.
É pena, seria uma luta boa que aglutinaria
o negro urbano, o caboclo ribeirinho, os povos das gerais, os índios da
floresta, os lavradores pomeranos... A bandeira da injustiça não ecoa muito no
Brasil, convivemos com ela numa boa: "injusto sim, e daí?'
Mas ninguém quer ser visto como
racista.
Fonte: Selene Herculano
Comentários
Postar um comentário