Quando a lei é para poucos
É triste imaginar o possível fim
da Mil Madeiras Preciosas, subsidiária brasileira do grupo suíço do setor de
madeira Precious Woods. A empresa, localizada no município amazonense de
Itacoatiara, a cerca de 170 quilômetros de Manaus, foi em 1997 a primeira no
Brasil, e uma das primeiras do mundo, a ter sua operação de extração de
madeira nativa em florestas certificada de acordo com os rigorosos princípios
do Conselho de Manejo Florestal, instituição internacional que criou o
padrão de exploração sustentável (conhecida como FSC, na sigla em inglês).
Isso significa que a Mil Madeiras, dona de 500 000 hectares de florestas, foi a
pioneira no país em provar que as madeireiras da Amazônia podiam ser
sinônimo não de desmatamento, mas, sim, de exploração sustentável. A chave
era o uso do “manejo”, técnica que define regras para a quantidade de árvores
que podem ser derrubadas e o período do corte, de modo a favorecer a
regeneração da floresta e sua perpetuidade. Nos últimos 15 anos, a Mil
Madeiras tornou-se também peça-chave para o município de Itacoatiara, que
tem hoje pouco menos de 100 000 habitantes. Além dos 600 postos de trabalho
formal que a empresa oferece, ela é também responsável por 50% da energia
limpa que abastece o município, a partir de uma termelétrica da empresa,
movida a resíduos de madeira de sua própria serraria. Infelizmente, a
hipótese do fim das atividades não é remota. “Estamos no prejuízo há
anos”, afirma o piauiense João Cruz, diretor florestal da Mil Madeiras. Cruz
afirma que os acionistas do grupo suíço estão insatisfeitos com os
resultados da operação brasileira. No mercado, comenta-se que ela esteja à
venda. A Mil Madeiras nega.
A situação periclitante da Mil
Madeiras é tudo, menos um caso isolado. A maioria das empresas que exploram
florestas na região amazônica de maneira legal e sustentável — seguindo à
risca as regras dos órgãos de meio ambiente ou preceitos sociais e ambientais
mais exigentes, como o do FSC — está hoje em agonia financeira. A serraria da
Cikel, uma das madeireiras mais conhecidas do setor, com áreas de floresta
certificadas pelo FSC no Pará, opera hoje com uma ociosidade de 80%. A
situação não é muito melhor na Orsa Florestal, cujas florestas localizadas
no Vale do Jari, no Pará, têm o selo verde: a empresa passou longe de cumprir
as metas que tinha estabelecido para 2012 e está com os estoques cheios. “É
possível ganhar dinheiro hoje com o manejo da floresta? Não. Quem disser o
contrário está mentindo”, diz Roberto Waack, presidente da Amata. A empresa
foi uma das vencedoras da primeira licitação, em 2008, para testar a
viabilidade da exploração sustentável de madeira em Amari, floresta da
União que está localizada no estado de Rondônia.
Por trás desse cenário sombrio
há um culpado: a concorrência desleal no mercado interno com a madeira ilegal
e, sobretudo, com o que os especialistas do setor e do próprio governo
batizaram de madeira “falsamente legal”. Segundo dados do Instituto do Homem e
Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), 14 milhões de metros cúbicos de madeira
em tora foram extraídos da Amazônia em 2009. Desse volume, 66% seriam
oriundos de planos de manejo autorizados pelo IBAMA ou por secretarias
estaduais de Meio Ambiente. Ou seja, em teoria, trata-se de madeira legal,
extraída de forma correta. Mas só em teoria. Na prática, o que se sabe é
que esse percentual esconde um bom volume de produto fornecido por madeireiras
que, com práticas ilícitas, burlam as normas e os sistemas de controle do
governo. A história da madeira falsamente legal pode começar com a
aprovação de um plano de manejo falso de uma área pelo Ibama ou por uma
secretaria estadual de Meio Ambiente. Com o suposto plano aprovado, o infrator
recebe o direito de acessar o sistema de controle de transações e de
transporte de madeira — o chamado DOF, em âmbito federal, ou Sisflora, nos
estados do Pará e de Rondônia — e ganha autorizações, ou “créditos”, para
extrair determinado volume do recurso por ano. Ele então usa os créditos que
recebe para colocar no mercado madeira extraída ilegalmente de uma reserva
indígena, de áreas privadas ou ocupadas por posseiros, entre outras
possibilidades.
Essa não é, porém, a única
maneira de conferir um carimbo de legalidade à madeira ilegal. Graças à
pouca fiscalização in loco, às fragilidades dos sistemas de informação e
à falta de profissionais de inteligência para analisar os dados por eles
coletados, o terreno para muitas outras artimanhas é fértil. Como resultado,
a madeira falsamente legal é hoje oferecida no mercado a um preço até 40%
inferior ao da madeira extraída de maneira lícita. Em relação ao produto
com o selo verde do FSC, a diferença chega a 50%. “Vender madeira certificada
no mercado interno se transformou numa utopia”, diz João Antônio Prestes,
diretor de recursos naturais e negócios florestais do Grupo Orsa.
A verdade é que o Brasil nunca
foi um bom mercado para as madeireiras que operam de maneira legal na
Amazônia. Durante muitos anos, no entanto, elas conseguiram se esquivar do
problema vendendo para o exterior, sobretudo a Europa, um cliente mais
preocupado com a questão do desmatamento. Desde 2008, porém, com a crise
econômica que assola a região, as exportações minguaram, e essas empresas
passaram a lidar diariamente com o imbróglio que é o mercado interno. O
único alento é que o governo parece ter acordado para a gravidade da questão
e promete intervir. E o raciocínio que o move é lógico: ao longo dos
últimos anos, o Brasil conseguiu reduzir o desmatamento com medidas de
repressão, mas é sabido que há um limite para a efetividade dessas
políticas. “Se não criarmos um mercado para explorar a madeira da Amazônia
de forma sustentável, estaremos lascados”, afirma Francisco Gaetani,
secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente. “Precisamos manter esse
setor de pé — e acabar com a concorrência desleal é crucial e urgente.”
EXPECTATIVA
DE MELHORA
Até agora, no entanto, o que
existe de concreto nessa direção? Há cerca de um ano, segundo Gaetani,
técnicos do ministério vêm analisando a crise do setor com profissionais do
Movimento Brasil Competitivo, organização criada pelo empresário Jorge
Gerdau Johannpeter para melhorar a administração pública, e da consultoria
de estratégia McKinsey. Não há ainda, porém, um plano de ação ou
cronograma definido para atacar o problema. Mas essa discreta movimentação
gerou algum otimismo no setor. “Estou confiante de que mecanismos para sufocar
a ilegalidade serão criados”, diz Waack, da Amata. Mas nem todos estão
animados. “É torcer para que o mercado lá fora se recupere”, afirma Prestes,
da Orsa. “Não tenho esperança de que a situação no Brasil mude.” O setor de
madeira legal não é o primeiro, e provavelmente não será o último, a
sofrer com a ilegalidade, que tira o vigor da economia do país e permite que
empresas e práticas de mercado desleais se eternizem. Em 2004, o comércio de
computadores piratas ou contrabandeados chegou a responder por 73% do mercado
brasileiro. E o que fez virar a maré para o lado dos fabricantes legais? Uma
ação efetiva do governo: no caso, um atípico corte nos impostos pagos pelo
consumidor ao comprar computadores. Foi um exemplo acabado de como uma
atuação correta do setor público pode impulsionar a economia. A exploração
sustentável de madeira na Amazônia nunca dependeu tanto de uma ação efetiva
do Estado — e que ela não venha tarde demais.
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