Água - Liquido Precioso
A poluição e o mau uso de
mananciais ampliam a escassez hídrica e fazem do acesso à água potável um foco
de tensão em diversas partes do globo.
O corpo humano é composto de mais
de dois terços de água. Para manter a saúde, precisamos bebê-la várias vezes ao
dia. É condição básica para a existência da vida; faz parte da rotina de todos.
Com ela, escovamos os dentes, tomamos banho, lavamos roupa e louça e ainda
geramos energia elétrica, produzimos alimentos, movemos indústrias,
transportamos mercadorias e aproveitamos o lazer. O planeta, fornecedor dessa
fonte vital, também precisa dela para manter-se saudável – e garantir o
equilíbrio do clima e dos ambientes naturais. Não é por acaso que a água
simboliza a vida. O problema é que se torna um bem cada vez mais escasso. Mais
que isso. Disputada como um tesouro raro e precioso, ela pode se transformar em
motivo de violência e guerra, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU).
Hoje, calcula-se que 2,2 bilhões de habitantes, quase um terço da humanidade,
sofre com a falta de água potável. Em 20 anos, serão 3,9 bilhões com sede.
Estima-se que a principal disputa
no planeta nos próximos 50 anos não será por petróleo, ouro ou carvão – mas por
água. O alerta consta do relatório divulgado pela ONU no Dia Mundial da Água.
Dentro de um cenário de crise, aumenta a briga pela posse e pelo uso desse
recurso. A questão preocupa, porque a desigualdade e a escassez tendem a
aumentar os conflitos. Além de atritos entre grupos rivais em um mesmo país, há
embates diplomáticos entre nações e outras desavenças que podem culminar nas
próximas décadas em confrontos armados pelo controle de mananciais. O relatório
identifica 46 países nos quais há risco de essa crise provocar brigas. O perigo
é maior entre nações que vivem escassez e compartilham o uso de rios e lagos.
Existem no planeta263 bacias hidrográficas transnacionais, abrangendo 145
países. Mais de 40%da população mundial habita essas áreas, como o mar Cáspio e
o mar de Aral, na Ásia; o lago Chade e o lago Vitória, na África, e os Grandes
Lagos da América do Norte.
Em alguns casos, as fontes são
disputadas litro a litro, como no Oriente Médio, onde dominar a água é estopim
de guerras desde a Antiguidade. Israelenses e palestinos lideram as disputas.
Sob o solo do deserto, estão os lençóis da Cisjordânia. Até 1967, os palestinos
usavam essa água à vontade, mas a ocupação israelense, após a Guerra dos Seis
Dias, acabou com isso. Os poços são controlados por militares israelenses. E
qualquer acordo de paz para a Faixa de Gaza exigirá um capítulo especial para a
água.
CRESCE A
BRIGA
Israelenses e palestinos, por sua
vez, confrontam a Síria e a Jordânia pelo controle do vale do rio Jordão, a
principal fonte de água da região. Exaurido pela mineração, pela irrigação e
até pela manutenção de campos de golfe no deserto, o Jordão está minguando.
Apenas um terço do volume original chega ao mar Morto, que pode sumir até 2050 e
se resume a um lago sem vida, seis vezes mais salgado que o oceano. Não muito
longe dali, a Síria briga com a Turquia e o Iraque pelo uso da bacia que
envolve os rios Tigre e Eufrates. Dona das nascentes, a Turquia represou o
Eufrates para gerar energia e irrigar cultivos e diminuiu a água que chega aos
países vizinhos. O maior foco de conflito foi a represa de Ataturk, construída
pelos turcos na década de 1990, mas novos projetos colocam em risco a paz. Na
Ásia Central, a tensão também é crescente. O Tadjiquistão e o Quirguistão
controlam 90% das reservas da região. Mas o Uzbequistão é o maior usuário e
pede acesso facilitado.
Mais de 400 tratados
internacionais envolveram o uso compartilhado de recursos hídricos desde 1820 –
sem contar os acordos sobre navegação, pesca e demarcação de fronteiras. Um dos
exemplos acorreu na Ásia, depois que Bangladesh passou 20 anos de escassez
porque a Índia construiu a enorme represa de Farakka no curso do rio Ganges,
para conseguir a maior quantidade de água antes do rio atingir o território de
Bangladesh. O conflito só cessou após a assinatura de um tratado em 1996 para
uso compartilhado da água. Mas o potencial de discórdia continua latente no
percurso do rio Ganges, que nasce no Himalaia, atravessa a Índia e desemboca na
baía de Bengala, em Bangladesh. Essa bacia reúne mais de 30 barragens e desvios
que reduziram a vazão do rio em 60% na estação seca, prejudicando os
bengaleses.
Há também disputas na África,
onde a ONU estima que o acesso às fontes hídricas seja a causa número 1 de
guerras até 2030. Na região do Nilo, nove países dependem desse rio para
abastecer a população. O Egito faz pressão econômica e militar sobre a Etiópia
e o Sudão, situados nas cabeceiras do rio, para que não construam barragens e
diminuam o volume de água no trecho egípcio. Em Darfur, oeste do Sudão, a
guerrilha é acusada de envenenar reservatórios para forçar a população
mulçumana a abandonar a região. Os conflitos têm o potencial de expandir seus
efeitos por outras regiões. A União Européia adverte que a falta de água vai
acirrar a corrida de imigrantes para o continente europeu. A escassez hídrica,
segundo previsões, deverá fazer perto de 100 milhões de refugiados ambientais
no planeta nos próximos 20 anos.
MÁ
DISTRIBUIÇÃO
Tudo isso acontece dentro de um
planeta com muita água, mas pouco disponível para o consumo. Dois terços da
Terra são cobertos por água, mas 97,5% desse volume é salgado. Dos 2,5% da água
que é doce, quase dois terços estão congelados nas calotas polares. A maior
parte do que sobra se esconde no subsolo e não tem acesso fácil. O que está
pronto para uso humano fica nos rios e lagos, que significa 0,4% de toda a água
do planeta. Mas nem essa porção está totalmente disponível. Para que não se
esgotem os recursos, é preciso usar no máximo a mesma quantidade de água
renovada pelas chuvas, dentro de um ciclo natural do qual participam os
oceanos, a atmosfera, as florestas e as demais coberturas vegetais do planeta.
A conta limita a 0,002% a água
utilizável da Terra. Precisamos de metade desse estoque. Se o padrão atual de
consumo se mantiver, em 30 anos as necessidades humanas vão empatar com a
capacidade da natureza de repor a água. Depois disso, ou racionamos o uso das
torneiras ou vamos secar rios e lagos até exaurir totalmente as fontes. A
ameaça é real, porque a população global não para de crescer e precisará de
mais água para se manter.
Recentes relatórios
internacionais afirmam que a falta de alimentos já é uma realidade global. No
futuro, a situação poderá ser ainda mais crítica, se não houver água. A
escassez coloca em risco as metas da Declaração do Milênio, assinada em 2000, sob
a coordenação da ONU, para reduzir a pobreza, a fome e a mortalidade infantil e
no mundo até 2015. Para nutrir a população mundial crescente, será necessário
duplicar a atual produção de comida. Isso exigirá um aumento de pelo menos 14%
na retirada de água para irrigar lavouras. Além do uso intensivo de água, há o
risco de impactos negativos, como a ameaça de mais desmatamento, poluição por agrotóxicos
e erosão dos solos.
CONFLITO
ENTRE USOS
Atualmente, a agricultura é a
atividade que mais consome recursos hídricos no planeta. Sozinha, representa
69% do consumo de toda a água doce. O aumento desse percentual pode provocar
conflitos com os demais usuários. As indústrias utilizam 21% da água disponível
na crosta terrestre e deverão usar mais para crescer e sustentar o
desenvolvimento econômico. Os outros 10% vão para o consumo doméstico – e há
necessidade de maior volume para abastecer a população não atendida.
A atual crise mundial dos
recursos hídricos possui várias causas. Uma das principais, segundo a ONU, são
as dificuldades de governo – ou seja, a incapacidade dos países de gerir a água
de maneira equitativa, por fatores como a corrupção, a falta de financiamento
para o setor e o despreparo técnico. O assunto preocupa: até 2025, o consumo
total de água para os diversos fins aumentará 50% nos países em desenvolvimento
e 18% no mundo desenvolvido. Esse crescimento poderá ser intolerável em várias
partes do planeta, diz o relatório Global Environment Outlook, divulgado pelo
Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, 20 anos após a publicação do
famoso documento Nosso Futuro Comum. Elaborado pela Comissão Brundtland, em
1987, foi o primeiro que alertou o mundo sobre a necessidade de aliar
desenvolvimento econômico e preservação ambiental.
A última edição do relatório diz
que é necessário mudar padrões de produção e consumo. Para produzir um carro,
gastam-se 400 mil litros de água. Um quilo de carne bovina consome 15 mil
litros. Os especialistas dizem que também é preciso reduzir o consumo e
melhorar a distribuição, tornando mais justo o acesso às fontes hídricas. O ser
humano necessita de, no mínimo, 50 litros de água por dia para atender suas
necessidades. Enquanto um norte-americano gasta, em média, 600 litros
diariamente, um africano não tem mais de 20 litros para usar no mesmo período.
Além do consumo exagerado, há desperdício. Nos plantios, dois quintos da água
são perdidos com sistemas de irrigação ineficientes e, nas residências, um
terço do consumo atual poderia ser economizado com medidas simples como não
deixar a torneira pingando. No caso das indústrias, aplicando-se novas
tecnologias, é possível reduzir em até 90% o consumo de água sem prejudicar a
produção.
DESASTRE
DA AÇÃO HUMANA
A desigualdade chama atenção.
Existem muitas reservas de água em regiões desabitadas e poucas nas mais
populosas, nas quais os impactos causados pela ação humana pioram o problema.
Barrar os rios para gerar energia ou acumular água para abastecimento é uma
dessas causas. Calcula-se que 60% dos 227 maiores rios do mundo sejam
bloqueados por barragens ou desviados por canais, com impactos para os
ecossistemas, para a pesca e para a população. Essas obras reduzem o fluxo
natural de sedimentos carregados para os oceanos, causando salinização do solo,
inundações e outros estragos nas zonas costeiras. Há mais de 45 mil grandes
barragens, em 140 países. Só a China, para sustentar a economia em franca
expansão, tem atualmente 105 obras dessa envergadura sendo planejadas ou em
execução. As barragens, somadas à poluição dos rios e lagos, colocam mais de 3
mil espécies na lista das ameaçadas de extinção, segundo a organização
internacional The World Conservation Union (IUNC).
A escassez vai além da pouca
quantidade – é também uma questão de má qualidade. A poluição por agrotóxicos
das plantações, substâncias químicas das indústrias e esgoto doméstico das
cidades faz com que se busque água cada vez mais longe das cidades, a um custo
maior. Saudáveis, só os rios distantes dos grandes centros urbanos, como o
Amazonas, na América do Sul, e o Congo, na África, citados pela ONU como os
menos problemáticos. Entre os mais poluídos estão o rio Amarelo, na China, e o
Volga, na Rússia, onde a água potável se restringe a apenas 3% de sua bacia
hidrográfica. No rio Colorado, nos Estados Unidos, a poluição transformou
florestas em pântanos insalubres.
SANEAMENTO
URGENTE
Uma das consequências é o aumento
das doenças associadas à falta de água e à poluição dos mananciais, a maior causa
de mortes no mundo. Cerca de 10 milhões de crianças morrem por ano acometidas
de diarréia e outros males provocados pela água contaminada. Mais da metade das
internações hospitalares no planeta resultam desses problemas, a um custo que
supera 12 bilhões de dólares por ano. A urbanização contribui para agravar o
quadro. Atualmente, metade da população mundial vive em cidades, sem os
serviços adequados de saneamento. No globo, uma em cada cinco pessoas não tem
acesso à água nem a esgoto tratado. Para reduzir esse déficit, a ONU escolheu
2008 como o Ano Internacional do Saneamento Básico, para conscientizar os
países a reduzir pela metade a população não atendida por esses serviços, até
2015. Para isso, é necessário investir nesse período 10 bilhões de dólares por
ano – menos de 1% do total gasto em programas militares no mundo.
Hoje, nos países em
desenvolvimento, 90% do esgoto é devolvido à natureza sem nenhum tratamento.
Como 1 litro de sujeira contamina 10 litros de água, é possível imaginar o
tamanho do estrago e seus reflexos. A poluição atinge, também, os oceanos,
muitas vezes levada pelos rios que neles deságuam. As indústrias lançam no
ambiente 500 toneladas por ano de produtos tóxicos. Diariamente, são despejados
2 bilhões de toneladas e lixo. Exemplo dessa contaminação é a “lixeira” do
tamanho do estado norte americano do Texas, no Pacífico Norte, onde
pesquisadores encontraram quase 1 milhão de pedaços de plásticos por quilômetro
quadrado, com efeitos nocivos à biodiversidade marinha.
Resultados da ação do homem na
atmosfera, como a emissão de gases de efeito estufa, podem agravar a escassez
de água. O aquecimento global aumenta a temperatura dos mares e altera as
correntes oceânicas que regulam o clima, promovendo mudanças no padrão das
chuvas, que recompõem naturalmente os mananciais. Pesquisadores do Painel
Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) advertem que o mundo deve se
preparar para os efeitos das mudanças climáticas na provisão de água no
planeta.
EFICIÊNCIA
E ECONOMIA
Segundo especialistas, dar maior
valor à água é um caminho para reduzir desigualdades e conflitos. Os serviços
de abastecimento precisam funcionar com eficiência, ser economicamente
sustentáveis e ter preços justos. Atualmente, são os mais pobres que arcam com
o maior custo da água. Em Dar es Salaam, na Tanzânia, os favelados pagam 8
dólares por mil litros de água comprada em latas, enquanto os mais ricos da
cidade gastam 34 centavos pela mesma quantidade de água que chega às torneiras.
No Reino Unido, esse mesmo volume custa 1,62 dólar e, nos Estados Unidos, 68
centavos. Países europeus aumentam a conta de água para reduzir o consumo.
O mercado de água já é
bilionário. Em 2000, o Banco Mundial previa que, em alguns anos, esse comércio
mundial movimentaria 1 trilhão de dólares. Parte desse lucro é auferida pela
água engarrafada. Em dez anos, o consumo desse produto aumentou 145% no
planeta, porque o consumidor não confia na qualidade da água que chega às
torneiras e aceita pagar até dez vezes mais caro pela segurança. Seguindo essa
tendência, é crescente a exportação de água para países que necessitam dela
para manter indústrias e cultivos agrícolas. Empresas também planejam ter
lucros com o tratamento de esgoto. Atualmente, só 5% desse serviço é prestado
por companhias particulares, mas vários países têm planos de privatizar o
saneamento básico, como forma de expandi-lo por um custo menor para o estado.
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