O CONTROLE DAS ENDEMIAS NO BRASIL E SUA HISTÓRIA
INTRODUÇÃO
Convencionou-se no Brasil designar
determinadas doenças, a maioria delas parasitárias ou transmitidas por vetor,
como “endemias”, “grandes endemias” ou “endemias rurais”. Essas doenças foram e
são, a malária, a febre amarela, a esquistossomose, as leishmanioses, as
filarioses, a peste, a doença de Chagas, além do tracoma, da bouba, do bócio
endêmico e de algumas helmintíases intestinais, principalmente a
ancilostomíase.
A lógica era o impacto dessas
doenças em saúde pública. Ainda hoje, esta conceituação de “endemias” é adotada
pelo Ministério da Saúde.
Essas doenças, predominantemente
rurais, constituíram a preocupação central da saúde pública brasileira por
quase um século, até que diversos fatores, notadamente a urbanização,
desfizeram as razões de sua existência enquanto corpo homogêneo de preocupação.
Neste artigo, procuramos analisar
a evolução das políticas e estratégias de seu controle.
PRIMÓRDIOS
DO CONTROLE DE ENDEMIAS
O conceito doenças infecciosas
resulta do desenvolvimento da microbiologia como disciplina científica, no
final do século XIX e início do século XX. Nesse período, graças ao desenvolvimento
de uma nova tecnologia, uma enorme quantidade de agentes infecciosos e seus
vetores, reservatórios e mecanismos de transmissão puderam ser identificados, permitindo
a consolidação de uma nosografia que já vinha se estabelecendo desde o final do
século XVIII.
Durante séculos, o controle das
doenças infecciosas se fundamentava na medicina dos humores. Os fatores
ambientais como os ventos, a chuva, emanações reais ou imaginárias, compunham
um figurino de ação tipicamente hipocrático.
A saúde pública brasileira antes da
República está repleta de medidas de intervenção ambiental, quase sempre nas
cidades, ainda que a maioria da população fosse rural. A localização dos cemitérios
e hospitais, a drenagem dos terrenos e a influência dos ventos e até de pessoas
“nocivas”, como mendigos, doentes mentais ou “leprosos” sempre constituiu um
ponto central de preocupação.
FINAL DO
SÉCULO XIX E O SALTO DE QUALIDADE
A partir do final do século XIX,
houve um salto de qualidade nas atividades de controle de endemias, decorrência
do advento da microbiologia como ciência. Varíola, febre amarela e cólera foram
as que mais sofreram a influência das novas idéias.
O início do século XX foi um
suceder de estudos sobre a etiologia, ocorrência e outros aspectos de
diferentes doenças endêmicas brasileiras, como os estudos de Gaspar Vianna
sobre a leishmaniose cutânea, de Lutz sobre a blastomicose sul-americana e a
descoberta da doença de Chagas em 1909. Este fervilhante movimento científico,
concentrado no Rio de Janeiro e em São Paulo, se fez sentir sobre o controle
das doenças. A febre amarela que vinha causando epidemias sucessivas no Rio de
Janeiro desde 1849, determinou a mais emblemática das ações de controle de
endemias na história do país.
Ao mesmo tempo em que a Comissão
Reed estudava a transmissão da febre amarela, em Cuba, e concluía de maneira
definitiva pela transmissão vetorial, Emílio Ribas, então buscando controlar a
febre amarela nas cidades cafeeiras do estado de São Paulo, passou a empregar o
controle do Aedes aegypti como estratégia única do controle da febre amarela,
em São Simão. O sucesso obtido ainda no século XIX, determinou a adoção da
estratégia em outras cidades de São Paulo e, posteriormente, através de Oswaldo
Cruz, no Rio de Janeiro.
Em 1908, a febre amarela urbana havia
desaparecido de São Paulo e do Rio de Janeiro, ainda que permanecesse nas
cidades costeiras do Norte e Nordeste.
Em 1899, a peste bubônica chegava
aos portos brasileiros, causando epidemias em Santos e no Rio de Janeiro.
Foi a peste bubônica, mais do que
a febre amarela, o gatilho para o desencadeamento da resposta governamental às
endemias e epidemias que acometiam as cidades brasileiras. A investigação conduzida
por Vital Brazil em Santos foi exemplar, e estabeleceu as bases dos serviços de
controle da peste. A peste foi eficientemente controlada, não chegando a causar
grandes epidemias e não mais surgindo no meio urbano, ainda que tenha
permanecido em focos silvestres e rurais, hoje silenciosos, no Nordeste e na
Serra dos Órgãos no estado do Rio de Janeiro.
Doença importada, de triste
memória no imaginário europeu desde a idade média, a chegada da peste
determinou uma enérgica resposta, que levou à constituição do Instituto
Butantan em São Paulo e do Instituto Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, ambos, ainda
hoje, duas grandes instituições de pesquisa em saúde pública e ciências
biológicas do país.
A renovação urbana talvez tenha
sido o grande legado da resposta sanitária brasileira do início do século XX.
Pereira Passos no Rio de Janeiro, Saturnino de Brito em Santos, Orozimbo Maia
em Campinas, solidamente apoiados pelos governos centrais, buscaram emular
Hausmann e empreenderam reformas nas suas cidades, com destaque às obras de
saneamento.
A
DESCOBERTA DO SERTÃO E A NOVA AGENDA DO CONTROLE DE ENDEMIAS
O impacto das endemias na
primeira década do século XX se fazia sentir essencialmente nas cidades. Tanto
foi que a malária, doença do sertão e de pequenas cidades, somente foi alvo de
ações sistemáticas quando dificultava projetos de grande importância, como a
modernização do porto de Santos, a construção de uma estrada de ferro no sertão
mineiro e a construção da adutora de água para o Rio de Janeiro, em Cachoeiro
do Macacu, na serra fluminense. País com um vasto, desconhecido e inexplorado
sertão, o Brasil ainda era uma constelação linear de cidades ao longo da costa.
Poucos anos antes, no final do século XIX, a recém-proclamada República havia
se dado conta dos riscos decorrentes de ignorar o povo e a cultura desse sertão,
quando do episódio de Canudos.
Talvez impulsionado por essa
trágica experiência, o governo brasileiro determinou ao Instituto Oswaldo Cruz
que realizasse uma série de expedições ao interior do país para conhecer a
realidade sanitária nacional.
A mais memorável dessas
expedições foi a de Artur Neiva e Belisário Penna, mas não podemos esquecer as
de Oswaldo Cruz à Amazônia, incluída aí a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré então
em construção; a de Lutz e Penna ao Nordeste e a de Lutz, Souza Araújo e
Fonseca Filho ao sul do país, chegando à Argentina pelo Rio Paraná.
O PERÍODO
ENTRE AS GUERRAS E AS NOVAS ALIANÇAS
O final da I Guerra Mundial alçou
os EUA à sua nova posição de destaque na ordem mundial, e colocou o Brasil nos
planos da Fundação Rockefeller, o braço sanitário internacional dos EUA.
Na época, o grande interesse da
Fundação Rockefeller era a ancilostomíase, cujo controle se baseava na
experiência adquirida no sul dos EUA no início do século, a febre amarela e a
malária, estas últimas buscando reproduzir a experiência do exército
norte-americano em Cuba e no Panamá.
A participação da Fundação
Rockefeller teve um peso considerável na formação do pensamento sanitário
brasileiro, influenciando-o até as décadas de 1950 e mesmo 1960. Financiou o
treinamento de uma geração de sanitaristas brasileiros nos EUA, a imensa
maioria na escola de saúde pública da universidade Johns Hopkins, em Baltimore.
Os três primeiros médicos
brasileiros a receberem bolsa de estudos foram Carlos Chagas, Geraldo H. de
Paula Souza e Francisco Borges Vieira.
Esse foi um período de intensa
atividade e de grandes avanços. A parceria com a Fundação Rockefeller foi
reforçada devido a duas importantes circunstâncias: o retorno das epidemias de
febre amarela urbana, com a epidemia de 1928-29 no Rio de Janeiro, e a detecção
do Anopheles gambiae no Rio Grande do Norte.
Quando a febre amarela deixou de
causar epidemias nas capitais brasileiras, a partir de 1908, as atividades de
controle do Aedes aegypti foram gradativamente sendo relegadas para um segundo plano,
até que, 20 anos depois, irrompe uma epidemia no Rio de Janeiro, controlada a
muito custo e com um contingente de 10 mil agentes. Essa epidemia serviu como
um sério alerta às autoridades, que entenderam haver a necessidade de programas
de controle de endemias mais organizados e de caráter permanente, o que levou o
governo brasileiro a firmar um acordo com a Fundação Rockefeller para o
controle da febre amarela em todo o país.
O
PÓS-GUERRA E AS NOVAS TECNOLOGIAS
O final da II Guerra Mundial
trouxe não só uma nova doenças endêmicas eram passíveis de controle, quando não
de erradicação. A capacidade organizativa adquirida pelos sanitaristas
norte-americanos durante a guerra e a percepção de que o controle das doenças
endêmicas e epidêmicas poderia ser um importante trunfo na busca de aliados
durante a Guerra Fria, fizeram com que o governo norte-americano, através de
diversas agências de cooperação internacional, assim como os organismos
internacionais de saúde, a Organização Pan-americana da Saúde (OPAS) e Organização
Mundial da Saúde (OMS), empreendessem uma série de ações globais ou regionais
com vistas ao controle e a erradicação de doenças.
No Brasil, essas ações tiveram
pleno desenvolvimento, graças a uma significativa corte de sanitaristas
formados no país e no exterior, que haviam acumulado uma invejável experiência
no controle de diversas endemias ao longo de décadas. Apoiados pela OMS e OPAS,
empreenderam duas grandes campanhas cujo objetivo final era a erradicação: a
malária, com sucesso parcial, e o Aedes aegypti, com sucesso total, ainda que
de duração efêmera.
No início da segunda metade do
século XX, havia uma grande proximidade entre essas organizações
internacionais. O presidente da OMS era Marcolino Candau, um sanitarista
brasileiro e o da OPAS era Fred L. Soper, um sanitarista norte-americano
anteriormente da Fundação Rockefeller, que trabalhara por vários anos no
Brasil, tendo sido responsável pelo programa de controle da febre amarela e
pela erradicação do An. gambiae do Nordeste brasileiro.
Ao lado das sempre lembradas
campanhas de erradicação do Aedes aegypti e da malária, há uma outra, sempre
esquecida, mas com resultados excelentes e duradouros, que foi a campanha de
erradicação da bouba. Este foi talvez campanha de erradicação mais
eficientemente conduzida e de maior sucesso de toda a história da saúde pública
brasileira, mas também a mais frequentemente esquecida.
O
DESMONTE DA MÁQUINA E A IMPLANTAÇÃO DO SUS
A manutenção das agências de
controle de endemias e de suas ações fazia parte da ideologia
desenvolvimentista dos anos 50 e 60, fortemente apoiadas e, muitas vezes
financiadas, por organismos internacionais e pelo governo norte-americano. O
gradual desinteresse deste último pelo controle e erradicação de endemias,
notadamente a malária, fez com que o governo brasileiro pós-1964 passasse a
relegar essas atividades para um plano cada vez mais secundário, preocupado que
estava com seu projeto de desenvolvimento de indústrias de base e de
infra-estrutura, muito mais urbano do que rural. O centro das preocupações em
saúde passou a ser o oferecimento de atenção médico-hospitalar à crescente
população urbana.
As ações de controle de endemias
foram perdendo sua importância na lógica oficial, ainda que fossem mantidas,
mas não mais com a prioridade dada no início da década de 1950. Tanto foi que o
Ae. aegypti, erradicado em 1955, voltou ao país por diversas vezes, mas sempre
eliminado, até que em 1973 se constata a reinfestação do país, não mais sendo
alcançada a erradicação.
O desmantelamento da estrutura de
controle das endemias não se restringiu aos governos militares, ao contrário,
se acelerou após a restituição da democracia e com a implantação do Sistema
Único de Saúde (SUS). A implantação do SUS implicou na enorme tarefa de passar
para o controle e responsabilidade do Ministério da Saúde e das Secretarias
Estaduais e Municipais de Saúde de todo o país todo o sistema de assistência
médico-hospitalar público, até então na sua maior parte sob o controle dos
órgãos previdenciários.
A constituição federal de 1988,
assim como as constituições estaduais que se seguiram, colocaram como direito
do cidadão e dever do Estado, o acesso à assistência médico-hospitalar.
SÃO PAULO,
UMA HISTÓRIA (QUASE) À PARTE
O controle das endemias no estado
de São Paulo não pode ser analisado dentro do conjunto do restante do país. Nos
demais estados do país, o controle das endemias sempre foi uma responsabilidade
federal, não obstante a descentralização prevista na primeira constituição
republicana em 1891. Em São Paulo, graças a uma situação econômica privilegiada
em relação ao restante do país e de interesses específicos determinados
principalmente pela agroindústria cafeeira, essa foi uma área de atuação do
governo estadual, desde a formação do Serviço Sanitário, em 1898 e mesmo antes,
já no final da monarquia.
A febre amarela, a peste e a
cólera constituíram os grandes desafios do final do século XIX em São Paulo; já
a malária somente foi enfrentada de maneira sistemática e organizada a partir
da década de 1930, quando se criou a Inspectoria de Prophylaxia do Paludismo,
uma divisão do Serviço Sanitário.
A malária e a doença de Chagas
foram duas doenças cuja transmissão vetorial foi interrompida em São Paulo
graças a campanhas bem conduzidas, muito antes do mesmo ocorrer em outras áreas
do país.
FIM DE
SECULO E O NOVO MILÊNIO
Chegamos ao final do século XX
com uma folha corrida no mínimo paradoxal. Algumas endemias importantes foram
controladas, algumas por ação direta dos programas de controle, outras por
força da evolução da sociedade, como urbanização, saneamento e melhoria das
condições de vida, não obstante ainda termos uma parcela significativa da
população vivendo próximo e abaixo da linha da pobreza. Dentre essas endemias,
podemos citar a doença de Chagas, resultado de uma combinação de fatores: ações
específicas de controle, urbanização e redução da população rural. A
transformação do trabalhador rural de permanente e residente no local em
trabalhador temporário, residindo na periferia de cidades, tendência observada
no país desde a década de 1960, foi um importante fator na redução da doença de
Chagas. A ancilostomíase sofreu uma importante redução, quase desaparecendo,
graças a uma conjunção de fatores: urbanização, maior acesso ao uso de
calçados, melhoria do saneamento e a disponibilidade de medicamentos
específicos de baixo custo, altamente eficazes e com quase total ausência de efeitos
colaterais.
É muito difícil conseguir
estabelecer uma tendência geral das endemias na virada do século. Ao mesmo
tempo em que o país se vê às voltas com repetidas epidemias de dengue, com a circulação,
até a data, de três sorotipos diferentes do vírus, vários estados vêm sendo
certificados pela OPAS como tendo interrompido a transmissão vetorial da doença
de Chagas.
Uma análise sensata, ainda que
sujeita a críticas, mostra que as endemias para as quais se dispõe de medidas
de intervenção eficazes e de custo acessível, que não dependam da melhoria dos
indicadores sociais e de qualidade de vida, sofreram uma redução significativa
do impacto causado sobre a sociedade. Exemplo disso é a doença de Chagas,
controlada mediante uma ação coordenada e sustentada.
A esquistossomose é um
interessante exemplo, ao mesmo tempo em que deixou de representar um papel
negativo sobre a população, graças à medicação específica, de custo acessível e
altamente eficaz, continua a expansão da área de transmissão da doença, agora
já atingindo todas as unidades da federação, inclusive os estados sulinos do
Rio Grande do Sul e Santa Catarina, além da crescente urbanização. Esse
comportamento indica que os determinantes da sua ocorrência ainda estão
presentes, apenas a doença deixou de determinar a morbidade anteriormente
vista.
MALÁRIA
A malária, muitas vezes utilizada
como exemplo de fracasso, foi, na verdade, um sucesso enquanto campanha de
controle, ainda que tenha ficado muito longe da meta da erradicação.
Quando o Brasil iniciou ações
sistemáticas de controle da malária, no início da década de 1950, a imensa
maioria dos casos de malária do país ocorria fora da região Amazônica, então
virtualmente despovoada. Ao longo de vinte anos, a malária foi eliminada da
região costeira do país e das áreas urbanas, restando alguns focos
remanescentes, muitos de provável origem zoonótica, nas áreas de mata atlântica
da região Sudeste.
A malária da Amazônia torna-se
representativa numericamente a partir da década de 1970, quando essa região
passa a ser povoada por migrantes do Sul, Sudeste e Nordeste do país, em busca
de trabalho nas obras de infra- estrutura (hidrelétricas, rodovias, projetos de
mineração), no garimpo, na extração de madeira e nos projetos agropecuários. A
abertura das fronteiras norte e oeste à ocupação e ao desenvolvimento econômico
não constava dos planos do programa de erradicação da malária proposto no
início da década de 1950, e uma adaptação do plano não foi feita para essa nova
circunstância no processo de desenvolvimento do país. Desse modo, a incidência
da malária, após atingir o seu nadir no início da década de 1970, inverte a
tendência de queda imposta pela campanha de erradicação e inicia um crescimento
que somente se interromperia no início do século XXI.
Apesar desse crescimento de mais
de 1.000% nos casos de malária num espaço de tempo de menos de duas décadas, a
malária na porção extra-Amazônica do país, onde se concentra a quase totalidade
da população, virtualmente desapareceu. A campanha de erradicação da malária
iniciada nos anos 50 foi um sucesso, o crescimento da doença na Amazônia foi
resultado da inexistência de um projeto específico de controle, as estratégias
da campanha foram delineadas para uma parte do país e contemplavam uma Amazônia
praticamente despovoada, com uma população ribeirinha de pequena mobilidade.
A malária exemplifica bem a
situação atual do controle de endemias,de um lado sucesso e de outro fracasso;
para o futuro, essa ambiguidade própria do país precisa ser resolvida, sob pena
de um panorama sanitário sombrio.
Fonte: Luiz Jacintho da Silva
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