Linha do tempo do Cinismo Ambiental
Quase ninguém mais consegue negar
que o mundo vive hoje uma crise ambiental – poluição do ar, do solo, das águas,
extinção de espécies, inundações, desabamentos, falta d’água – enfim, inúmeras
evidências de que há um desequilíbrio no meio ambiente. Mas o que pode ainda
não estar tão claro é que, apesar de perversa para a maior parte das pessoas, a
destruição dos bens naturais pode gerar lucros para uma minoria. E como isso
acontece? Essa pergunta foi respondida na aula inaugural da EPSJV/Fiocruz com a
conferência Rio+20: a quem serve a economia verde? Proferida por Camila Moreno,
no último dia 22 de março. “Se existisse floresta por todos os lados, alguém
pagaria por um espaço para que as araras pudessem se reproduzir? Se tivesse
água limpa por todos os cantos alguém pagaria por água?”, diz a pesquisadora.
Ela explica que a Economia Verde carrega uma grande contradição: ela só produz
riqueza quando há escassez dos recursos naturais.
Camila Moreno, que é coordenadora
de sustentabilidade da Fundação Heinrich Böll e acompanha há vários anos as
convenções sobre clima e biodiversidade das Nações Unidas, definiu com riqueza
de detalhes a história da ONU e da transformação da economia ao longo do tempo.
“Para falar de Economia Verde e Rio+20, primeiro temos que falar sobre o que é
uma Conferência das Nações Unidas. As Nações Unidas surgiram no mundo a partir
de 1944, antes disso existia algo chamado a Liga das Nações”, inicia a
pesquisadora, que também é membro do GT de Ecologia Política do Conselho
Latinoamericano de Ciências Sociais (Clacso) e do Conselho Internacional da Red
por uma America Latina Libre de Transgenicos (RALLT). Com humor, Camila compara
a Liga das Nações, que deu origem a ONU, com a reunião dos super-heróis dos
desenhos animados “para salvar o mundo do mal”. “Depois da 2ª Guerra Mundial é
impossível pensar o mundo sem pensar o que é o multilateralismo, que é esse
espaço construído pós 2ª Guerra Mundial – as Nações Unidas. E lá cada país tem
direito a um voto. O voto de um país africano em tese vale o mesmo que o voto
da Alemanha ou da França, mas o que acontece é que essa estrutura que se montou
para justamente governar o mundo vem passando por profundas transformações e
sendo profundamente questionada”, diz. Ela explica que a formação de grupos de
países, como os G7 e G20, fez uma alteração na correlação de forças dentro das
Nações Unidas, dando mais poder às grandes potências.
A pesquisadora detalha também as
transformações no conceito de economia, o que, para ela, é outro conhecimento
fundamental para quem quer compreender a proposta de Economia Verde. Camila
observa que a palavra economia vem da palavra grega ‘oikos’, que significa
cuidar da casa, ou seja, fazer toda a gestão do abastecimento, garantir que
haja animais para a alimentação, plantio, etc. O dinheiro, símbolo da economia
atual, também não era em papel ou moedas como é hoje. “Já foram utilizadas
conchas, sementes de cacau, pecinhas de cerâmica. Uma série de coisas foi usada
ao longo da história para que as pessoas trocassem e esse valor nas trocas
permanecesse estável”, comenta. De acordo com a pesquisadora, as ideias de
economia ligadas a crescimento fazem parte da história mais recente. “Essas são
ideias recentesna história. Porque quando a gente pensa em oikos, esse cuidar
da casa não significa derrubar a casa dos outros, ocupar e passar por cima e ir
crescendo e acumulando. Porque eu não posso crescer a ponto de expulsar os
outros para fora da Terra. Talvez em algum momento eu possa construir naves
espaciais e mandar todos os que sobram para outro planeta”, ironiza.
Linha do
tempo
Camila destaca vários momentos
importantes para compreender como o mundo chega hoje à Rio+20 com a proposta
oficial da Economia Verde como solução para a crise mundial. Seguindo a linha
do tempo, a pesquisadora ressalta a realização da Conferência de Bretton Woods
– quando foram criados o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI)
– e a Guerra Fria, que dividiu o mundo no bloco socialista e o bloco
capitalista. Da mesma forma, a própria criação da ONU e da Organização das
Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), presidida pelo brasileiro
Josué de Castro, é considerada um marco nesse processo. “Josué de Castro coloca
bem claro que a fome e a questão da alimentação do mundo são problemas
essencialmente políticos. Não é a toa que ele fala isso. Naquele tempo a
estratégia da Guerra Fria, de como vencer o bloco comunista, foi fazer uma
Revolução Verde baseada na ideia de transformar massivamente os ecossistemas do
mundo em grandes monoculturas dependentes de sementes híbridas. Pela primeira
vez na história, os camponeses teriam que comprar as sementes a cada colheita e
usar todos os químicos que sobraram da 2ª Guerra”, critica.
Entretanto, segundo Camila, houve
quem questionasse o discurso da Revolução Verde. Outro marco importante para a
pesquisadora é a publicação do livro Primavera Silenciosa, da bióloga
norte-americana Rachel Carsons, em 1962. “Estudando os botos na costa da
Califórnia, ela descobriu que toda a vida marinha está profundamente
contaminada pelo uso cumulativo dos agrotóxicos, que entram na terra, permeiam
o ciclo das águas e não saem da natureza. Ela diagnosticou não apenas a
extinção de várias espécies, mas também que esses químicos e esses venenos
atingem a maioria da população”, relata. O livro, ressalta Camila, fez um
grande sucesso e foi considerado a fundação do movimento ambientalista nos
Estados Unidos, que depois se espalhou para outros países.
No início dos anos 70, outra
publicação teve papel importante no processo que culminará com a Rio+20, mas
dessa vez corroborando o pensamento de privatização da natureza. Trata-se do
texto A tragédia dos Bens Comuns, de Garret Hardin, que defendia a ideia de que
tudo que é público está fadado a desaparecer. É nesse contexto, segundo Camila,
que é realizada a primeira conferência da ONU sobre Meio Ambiente, em 1972, na
cidade de Estocolmo. “Pela primeira vez esses países, dentro da estrutura das
Nações Unidas, se juntam para pensar o meio ambiente humano. Mas o que acontece
é que um ano depois dessa Conferência de Estocolmo, quando deveria ser lançada
uma agenda para pensar como proteger o meio ambiente como um bem comum,
acontece um grande baque na história com a Crise do Petróleo”, aponta. A
pesquisadora conta que nessa época é criada a Organização dos Países
Exportadores de Petróleo (Opep) e a economia entra na época da financeirização,
ou seja, acaba o lastro das moedas em ouro. “Hoje, como não tem mais o ouro,
como o dinheiro é todo virtual, como a nossa economia internacional é toda
entregue ao capital financeiro, das bolsas de valores, o sistema econômico
precisa dar um salto, e é esse salto que vai se cristalizar na Rio+20, onde o
esforço será o de convencer o mundo de que agora entramos na era do capital
natural”, fala.
Nos anos 80, continua Camila,
dois personagens – o então presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan, e a
primeira ministra britânica Margareth Thatcher – protagonizaram outro momento
importante na história: eles são os grandes defensores, bem como colocam em
prática, as políticas neoliberais. A pesquisadora explica que as reformas
implementadas pelos dois governantes, chamadas de “ajustes estruturais”,
consistiram em privatização e precarização dos direitos dos trabalhadores.
“Essas medidas que de maneira geral transformaram todas as economias do sul
numa mesma época ficaram conhecidas como o Consenso de Washington”, detalha.
Além deste Consenso, de acordo com a pesquisadora, outro consenso também é
forjado um ano antes – o relatório escrito pela primeira ministra noruguesa Gro
Harlem Brundtland a pedido das Nações Unidas chamado Nosso futuro Comum, que
traz pela primeira vez o termo desenvolvimento sustentável. Camila destaca a
semelhança do nome desse relatório com o título do documento para a Rio+20: O
futuro que queremos. “Mas a pergunta que não quer calar é: quem queremos? Essa
é uma pergunta que devemos fazer sempre, quem fala em nome de nós? A quem
interessa?”, alerta.
Queda do
muro de Berlim
Para Camila, o ano de 1989,
quando houve a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, também é outro
período fundamental para entender a conjuntura do mundo. Pouco depois, em 1992,
é realizada no Rio de Janeiro a Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento – a ECO 92. “Para celebrar essa vitória de um
sistema sobre o outro é que se realiza a Conferência do Rio, sob o governo do
Collor, e que traz ao Rio 108 chefes de estado e de governo num momento
histórico até hoje jamais repetido. Em nenhuma outra ocasião tantas autoridades
mundiais estiveram juntas em um mesmo lugar”, diz. Camila detalha que nessa
Conferência, para dar uma justificativa à sociedade civil, são assinadas três
convenções – sobre clima, diversidade biológica e combate à desertificação – os
mesmos temas que estão na pauta da Economia Verde. “Vinte anos depois, o que a
Conferência Rio+20 oferece é: o mercado do clima, da biodiversidade e do solo”,
protesta.
Apesar disso, segundo Camila, a
sociedade civil não ficou pacífica diante das propostas de mercantilização dos
bens naturais. Ela destaca movimentos de contestação que surgiram na década de
90. Em 1993, há a criação da Via Campesina; pouco tempo depois, o levante
Zapatista, questionando o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta).
“Em 1999, quando a OMC se reúne na cidade de Seattle (EUA), as ruas são tomadas
pelo movimento anti-globalização, que pela primeira vez aparece. A reunião é
suspensa, há barricadas e fogo na cidade, e a sociedade civil diz: ‘a vida não
se vende, o mundo não é uma mercadoria’. Essa campanha dá início ao processo do
Fórum Social Mundial”, exemplifica.
Dez anos
da ECO 92
Seguindo a linha do tempo, a
coordenadora de sustentabilidade da Fundação Heinrich Böll chega até o ano de
2002, quando foi realizada, em Joanesburgo, na África do Sul, a Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, também
conhecida como Rio+10. Segundo a pesquisadora, a Conferência foi um fracasso
porque os governos tiveram que reconhecer que muito pouco foi feito em 10 anos
após a ECO 92. Nesse momento, a solução apresentada pelos países para os
problemas ambientais, conforme relata Camila, são as parcerias
público-privadas, e, assim, ganha força a ideia de que as empresas precisam ser
sócias dos governos para a sustentabilidade acontecer. “Dez anos antes, na Rio
92, era impensável que uma empresa estivesse sentada dentro das Nações Unidas.
Isso muda drasticamente em dez anos. O setor privado, as empresas e todas as
instituições que visam o lucro começaram a se legitimar como parte de um
processo de governar o mundo”, reforça. Em 2005, há uma vitória dos movimentos
sociais com o plebiscito contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e
também, de acordo com Camila, outro evento importante: o furacão Katrina nos
EUA, que expõe a fragilidade do ambiente e das populações pobres frente as
mudanças climáticas. “Quando há uma inundação é muito diferente o que acontece
numa cobertura no Leblon e o que acontece nas periferias de São Paulo e do Rio,
e essa fragilidade dos mais pobres ficou bastante evidente com o furacão
Katrina”, comenta.
Mais uma vez, um outro relatório
é definitivo na história: o documento chamado A Economia das Mudanças
Climáticas, conhecido também como Relatório Stern, escrito em 2006 por Nicholas
Stern, ex-economista chefe do Banco Mundial, sob a encomenda do governo da
Inglaterra. Camila destaca que o documento vê oportunidades de negócios com o
aquecimento global, como a produção de agrocombustíveis. Segundo a
pesquisadora, a partir desse relatório, o termo economia de baixo carbono
começa a ganhar peso nos discursos dos governantes. Já em 2008, seguindo a
linha do tempo, explode a crise financeira. “Eu recomendo que vocês assistam ao
filme Trabalho Interno – Inside Job um documentário brilhante sobre quem forma
os economistas que conscientemente foram cúmplices da crise financeira, e sobre
como o sistema se aproveita das crises para crescer. Ou seja, a crise ambiental
não é um obstáculo ao capital, é uma oportunidade de negócios”, diz.
Segundo Camila, é a partir daí
que o discurso “verde” toma ainda mais forma. A pesquisadora destaca que
governos do mundo inteiro já entraram em acordo sobre uma métrica para colocar
preço nos serviços dos ecossistemas, como a polinização feita pelas abelhas, ou
a renovação do ar. “O mercado de carbono é um mercado de compra e venda de
direitos de poluir o ar. Hoje já existem dois projetos de lei que tratam sobre
como será a legislação para determinar pagamento de serviços ambientais. Um dos
principais serviços ambientais, que supostamente vale bilhões, é a polinização
das abelhas. Mas a pergunta que não quer calar é: como eu pago as abelhas? Qual
é o sindicato das abelhas? Quem vai receber em nome das abelhas?”, brinca.
Hegemonia
A pesquisadora reforça o quanto o
conceito de hegemonia é fundamental para compreender os consensos forjados ao
longo da história, inclusive o que se aproxima, de defesa da Economia Verde, na
Rio+20. “A Economia Verde diz, por exemplo, que as cidades são as mais
eficientes e que é ineficiente viver no campo. Uma das tarefas da Economia
Verde é esvaziar o campo porque é impossível vender pacotes tecnológicos de
transmissão de energia eólica, energia solar e vender várias patentes para as
pessoas que estão dispersas em assentamentos, para povos indígenas,
quilombolas, que usam muito pouco dinheiro. O campo deve ser o local onde se
vai produzir ecoturismo e vender pagamento por serviços ambientais. Mas é
preciso pensar em uma pergunta bem básica: quem pode vender alguma coisa? Quem
poderá vender serviços ambientais? Quem é proprietário de terra. E nós sabemos
que o Brasil é o que tem a mais desigual concentração de terra do mundo. Então,
quem irá vender e lucrar novamente será o agronegócio”, conclui.
Camila encerrou sua apresentação
falando sobre mais um dois instrumentos de implementação da Economia Verde em
curso já no Brasil, a Bolsa Verde do Rio, e as recentes mudanças no Código
Florestal brasileiro. “Durante a Rio+20 haverá um evento imperdível: o
lançamento da Bolsa Verde do Rio. O que será vendido? Créditos de carbono,
direitos de emissão de efluentes químicos na Baía de Guanabara, títulos das
UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora], porque para fazer bons negócios é
preciso ter a pobreza pacificada e militarizada”, afirma. Sobre o Código
Florestal, ela explica que o principal capítulo da nova legislação fala
justamente sobre incentivos financeiros, o que, para Camila é emblemático da
Economia Verde. “O capítulo dez diz que cada hectare de cobertura vegetal que
os proprietários de terra tenham poderá ser inscrito no cadastro rural. Dessa
forma, será emitida uma cédula de cobertura vegetal, e uma vez emitindo essa
cédula, o proprietário terá 30 dias para registrá-la na bolsa de valores,
porque isso poderá ser comprado e vendido. Ou seja, a partir da aprovação do
Código Florestal, o fiscal do Ibama pode chegar em uma monocultura de cana de
açúcar com 5 mil hectares, com trabalho escravo, e perguntar: ‘cadê a reserva
legal?’ Ele vai olhar em volta e não vai ter nenhuma árvore, mas o proprietário
vai dizer assim: ‘tá aqui o papel, aqui está a minha reserva legal, eu tenho
tantos hectares no Tocantins’”, exemplifica.
Para a pesquisadora, esse é um
prenúncio do que pode acontecer em escala mundial, embora ainda haja obstáculos
a essa proposta que precisam ser potencializados. “Daqui a alguns anos pode
existir um mercado do que ainda resta da natureza e quem ganhará com a Economia
Verde serão os proprietários dos recursos naturais. E o grande obstáculo para
isso é que ainda existam no mundo bens comuns, áreas de uso coletivo e povos e
populações que ainda acreditam que não é privatizando, e nem através do
comércio, que se vai construir outra sociedade e outra natureza”, concluiu.
Fonte: www.ecodebate.com.br
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