Você já comeu a Amazônia hoje?
Eu não aceito que, em meu nome, o
governo federal brasileiro conceda autorização para o desmatamento da Amazônia,
e você, aceita? Eu não autorizo que o dinheiro público, de bancos oficiais,
seja empregado para a criação de bois na Amazônia, e você, autoriza?
Você e eu somos bois-de-presépio
ou cidadãos do planeta? Você acredita que a sua forma de viver, alimentar-se,
comportar-se, construir a sua casa, presentear seus amigos, visitar os lugares
ou votar possua relação direta com a Amazônia?
Caso afirmativo, você aceitaria
avaliar se está comendo ou não a Amazônia? A cada dia as pesquisas científicas
e os relatórios ambientalistas são mais taxativos: não podemos nos dar ao luxo
de esperar que as pessoas se convençam sobre a gravidade da situação da Amazônia.
Será tarde demais quando fazendeiros, garimpeiros, madeireiros, funcionários
públicos, representantes do poder público e a população em geral, despertarem
para o fato. Teremos perdido a maior
parte da Amazônia.
Os fatos
Em cinco séculos 95% das populações
indígenas desapareceram. Nações inteiras foram extintas pelas doenças, pela
escravidão e pelas armas trazidas pelos europeus. As Nações que sobreviveram,
cerca de 180, com mais de 200 mil indivíduos (1% da população da região),
contam com poucos aliados entre os
funcionários públicos e organizações da sociedade civil para se defenderem de
garimpeiros, caçadores, ladrões de madeira e grileiros.
Em termos sociais a Amazônia é
uma das regiões de maiores desigualdades econômicas e sociais do planeta. Esta
é, de longe, a mais violenta do país, respondendo pela maioria dos casos de
morte em conflitos pela terra, número de trabalhadores escravizados em fazendas
de pecuária e pela grande insegurança das áreas urbanas.
Os 23 milhões de habitantes estão
longe de se beneficiar da biodiversidade, da etnodiversidade, de suas riquezas
culturais e da produção de madeira e minerais. O IDH (Índice de Desenvolvimento
Humano, da ONU) da região equivale ao dos países mais pobres do planeta.
Em termos ambientais oferecemos,
ano após ano, o maior espetáculo de pirotécnica ao queimarmos mais florestas
para virarem pasto. O desmatamento e as queimadas da Amazônia tornam o Brasil
um dos principais países emissores de gases que contribuem para o efeito
estufa. As mudanças climáticas são irreversíveis.
Em termos de biodiversidade, em
apenas 4% da superfície terrestre a Amazônia continental deve abrigar mais de
1/5 da biodiversidade do planeta. Nas áreas mais comprometidas, como no entorno
de Belém, por exemplo, ¼ das aves estão ameaçadas de extinção. Uma vez extinta
uma espécie, esta extinção é para sempre.
Em termos ambientais, de 1.500 a
1.964 desmatamos menos de 1% da Amazônia. Nos últimos 40 anos desmatamos cerca
de 16% da região, uma área equivalente a duas vezes a Alemanha (ou três estados
de São Paulo) em pasto. Esta área de 750 mil km2 é duas vezes maior que a área
agrícola do pais. Pior, 1/4 desta área encontra-se abandonada porque o objetivo
de derrubar o mato foi o de tomar a posse da terra, para dizer: aqui tem dono.
No momento estamos perdendo cerca
de 24 mil km2 de cobertura nativa ao ano. Isto significa que a cada ano estamos
desmatando uma área equivalente a 2/3 da Bélgica (ou do estado de Sergipe).
A cada ano perdemos cerca de 1%
do que resta da floresta amazônica. Se nada for feito teremos perdido mais da
metade da floresta nos próximos 30 anos. Eu não autorizei. Você autorizou?
Estamos apenas medindo a febre e
não combatendo as causas da doença. A febre em um doente alerta que algo vai
errado, é apenas um índice. Há grande comoção quando os índices de desmatamento
são expostos ao vexame público, e pouco interesse em discutir as verdadeiras
razões de seu crescimento.
São os grandes fazendeiros! -
apontam uns! É a expansão da soja! - sugerem outros. É a abertura de estradas,
a ineficácia e ausência do poder público, o aumento das fazendas, os
madeireiros, os garimpos, e assim por diante... Será que não continuamos na periferia
do problema? Será que estamos apontando apenas as consequências de atos que
praticamos em nosso dia-a-dia, de forma relapsa, impensada e, digamos,
irresponsável?
Os
responsáveis somos nós!
Será que estamos fazendo as
perguntas certas? Quem é responsável pela maior parte dos desmatamentos? Não
será difícil responder: as propriedades rurais dedicadas à pecuária. Trata-se
apenas das grandes fazendas? Não, as pequenas e médias têm na pecuária bovina e
bubalina (de búfalos) sua principal atividade.
Há grande comoção quando os índices de
desmatamento são expostos ao vexame público, e pouco interesse em discutir as
verdadeiras razões de seu crescimento. E por que expande a pecuária na
Amazônia? Certamente um fazendeiro tradicional irá comentar: “Porque é mais
barato produzir carne na região, a terra tem pouco valor, a mão de obra é
barata, há pouca fiscalização dos órgãos ambientais, trabalhistas e da receita
federal”.
Esta, no entanto é uma resposta
insatisfatória. Afinal, esta carne vai para algum lugar. Alguém consome este
produto. Os dados são claros: mais de noventa por cento da carne produzida na
Amazônia é consumida no próprio Brasil, a maior parte nas regiões de maior
poder econômico – Sul e Sudeste. O crescimento do consumo de carne bovina é
significativo. A cada dia mais e mais pessoas querem a sua picanhazinha e a sua
maminha.
Em quarenta anos, de 1964 a 2004,
o rebanho bovino da Amazônia saltou de 1,5 para 60 milhões de cabeças. Parte
deste rebanho é clandestino. Este lote de animais prontos para morrer para
saciar o desejo de comer carne bovina representa 1/3 do rebanho brasileiro.
Três cabeças de boi para cada habitante da Amazônia. No Brasil já há mais bois
que gente!
A pecuária é a principal
atividade econômica rural da Amazônia. Não se trata apenas de grandes e médias
propriedades (estes são 25 mil famílias com áreas acima de 500 hectares). A
maior parte dos 400 mil pequenos proprietários rurais da Amazônia tem na
pecuária a sua principal fonte de renda (seja pelo fracasso das demais
atividades econômicas, seja pela completa incompreensão do que seja a natureza
amazônica ou impaciência com a Natureza, preferindo carbonizá-la a conduzir a
dança da sustentabilidade).
Lembremos que estamos em um país
onde a maioria vive em grande carestia. Não fosse o baixo poder aquisitivo do
brasileiro o consumo de carne seria pelo menos o dobro. O brasileiro come, em
média, um bife pequeno por dia (100 gramas) - 36 kg de carne/ano.
Um boi de 16 arrobas tem em média
240 kg de carne. Se você comer carne bovina durante sua vida (72 anos – a idade
média do brasileiro), isto significa um boi a cada 6,6 anos, 11 bois inteiros
durante a vida – 2,6 toneladas de carne! Destes 11 bois, pelo menos 4 terão
vindo da Amazônia, ou seja, a cada três dias o brasileiro come um bife da
Amazônia.
90% da
carne produzida na Amazônia é consumida no próprio Brasil
Sabe-se que este é um índice
médio. O consumidor da classe alta e média chegam a comer mais de 3 vezes esta
cifra - 108 kg/carne bovina/ano. Ou seja, um caminhão com 32 bois, mais de 7,5
toneladas de carne em sua vida!
Quanto
custa para a Humanidade este bife?
A insistência do modelo mundial
de ocupação do solo, que privilegia a pecuária, é o principal responsável pela
fome e desigualdade na área rural do Planeta. A quantidade de água, solos e
recursos utilizados para produzir um quilo de carne seria suficiente para
alimentar pelo menos 50 pessoas.
A expansão da pecuária é
responsável por pelo menos 2/3 dos desmatamentos das florestas tropicais do
planeta. Estas já ocuparam 16% do planeta. Hoje ocupam menos de 9%. Da II
Guerra Mundial até hoje perdemos mais de 3% das florestas tropicais do planeta.
Por quê? Principalmente porque há gente querendo comer carne bovina.
A pergunta que fazem os
fazendeiros é: quanto o bife custa no seu prato? A pergunta que deve inquietar
o cidadão deste planeta é: “quanto custa de esforço à Humanidade para você ter
o luxo de um bife em seu prato?”
A pecuária é o pior empregador
que existe no planeta. A miséria brasileira no campo pode ser resumida a uma
frase: a pecuária bovina expulsou o homem do campo. Numa grande fazenda na
Amazônia, emprega-se diretamente uma pessoa a cada setecentos bois, que ocupa
uma área de 1 mil hectares. A mesma área com agricultura familiar empregaria
pelo menos 100 vezes mais, com agro-floresta em permacultura empregaria 250
pessoas!
A pecuária gera pouca renda e
esta é praticamente transferida para fora das regiões produtoras. A ilha do
Marajó, uma área do tamanho da Suíça, após duzentos anos de pecuária (bovina e
bubalina), tornou-se uma das áreas mais pobres da Amazônia - e do planeta – com
índices de desenvolvimento humano (IDH) equivalentes aos de Bangladesh. Em
Chaves, no Marajó, um quarto das crianças está fora da escola e 77% das
crianças não tem luz em suas escolas!
A pecuária é altamente
concentradora de renda. Inexiste uma única região do Brasil onde a pecuária
promoveu o desenvolvimento com justiça social. Pior, a maior parte dos
fazendeiros perde dinheiro com a atividade. Como não sabem fazer contas não
percebem que estão ficando mais pobres a cada dia e que pouco poderão oferecer
a seus filhos e netos.
A pecuária é tão ineficiente que
seria mais negócio ao pecuarista vender tudo o que tem e viver do dinheiro
aplicado. Os estudos científicos do Imazon apontam que a pecuária é tão
ineficiente que, em média, não oferece uma renda superior à da caderneta de
poupança. Ou seja, seria mais negócio ao pecuarista vender tudo o que tem e
viver do dinheiro aplicado.
Porquê, então, optamos pelo boi?
Porque não pensamos, somos tão bovinos quanto a ilustre e inocente criatura.
Não medimos consequências. Pautamo-nos pelo passado. Não questionamos se o que
nossos pais e avós fizeram seria o melhor para nós, para nossas famílias e para
a Humanidade.
Nem sempre a Humanidade fez
escolhas certas. Em sua maioria são escolhas cômodas. Não medimos as consequências.
No entanto, estamos diante de uma encruzilhada – ou transformamos a Amazônia em
um imenso pasto ou iremos entregar às futuras gerações a mais diversa e bela
floresta tropical do planeta. A escolha é sua. E de mais ninguém.
Quinhentos
anos de atraso
Não há por que se assustar com
esta responsabilidade. O Brasil é o campeão da falta de percepção ambiental e
social. A pecuária bovina é sinônimo da história da ocupação do Brasil. Desde
que o primeiro europeu colocou seus pés no Brasil, foi seguido pela pata do
boi. O vírus da gripe, o boi, a bíblia e a arma de fogo modificaram este
continente – difícil saber o que causou mais danos.
O boi é uma fonte de proteínas de
baixíssima eficiência energética (converte em carne meros 7% do que come). Com
sua pata compacta o solo, causa erosão e destrói as micro-bacias e o seu
consumo traz sérias consequências à saúde.
O boi é um trator funcionando 24
horas. E por quê? Para saciar a vontade de comer picadinho, hambúrguer e
estrogonofe. Para transformar o Brasil no maior pasto do planeta foi preciso
“abrir” espaço para este animal. “Mato” (leia-se: floresta tropical com grande
diversidade biológica) não alimenta boi. As florestas tem que ceder lugar ao
pasto. Poderíamos resumir a história do desaparecimento da Natureza do Brasil
em uma única lápide: “virou bife”.
Poderíamos resumir a história do
desaparecimento da Natureza do Brasil em uma única lápide: “virou bife”. Em 500
anos reduzimos os 1,5 milhões de hectares da Mata Atlântica (floresta tropical
atlântica) a meros 7% de sua área original, a Caatinga para menos de 20% e o
Cerrado para menos de 25% de sua área. Pior: a degradação continua, de maneira
acelerada.
Insistimos em ocupar novos pastos
na Amazônia ao invés de melhor a produtividade do que já se transformou em
pasto no Sul, Centro-Oeste e Sudeste. O Brasil continua um país irresponsável
em termos de produtividade na pecuária. Dos 850 milhões de hectares do Brasil,
há no país cerca de 250 milhões de hectares de pasto (cerca de 30% do país).
Deste total, cerca de 30% está na Amazônia - 75 milhões de hectares. A
produtividade na Amazônia é pífia – 0,7 cabeças/hectare - símbolo da
incompetência em compreender e tratar o meio físico amazônico. Vamos lembrar
que o Brasil todo possui cerca de 50 milhões de hectares em área plantada!
Neste ritmo, em duas décadas
teremos mais bois na Amazônia do que a totalidade do rebanho brasileiro atual
(170 milhões de cabeças). No Brasil já há mais bois que brasileiros.
Greenpeace
em ação, em outubro de 2001
Resumo de nossa história: o
Brasil virou pasto e nossa grande contribuição à humanidade foi substituir a
maior floresta tropical do planeta em churrasquinho. Carne com gosto de fumaça,
violência e extinção de espécies. Apesar da ditadura militar ter se
desmilinguido nos anos 1980 a Amazônia continua sob o domínio do medo, da lei
do mais forte, do coronelismo, da grilagem de terra, da corrupção e do
incentivo fiscal a quem dele não necessita. Quem manda é o revólver e a
motoserra. Um boi vale mais que uma vida.
Por quê?
Porquê insistimos em incorrer nos
mesmos erros que nossos antepassados europeus, para quem a “pata de vaca” era
sinônimo de progresso. O boi é celestial. O mato é o demônio. O arame farpado é
progresso. A floresta calcinada é progresso. O mugido do boi é progresso. O
pasto, que pode ser medido e contabilizado, é celestial.
O país continua a tratar a
Amazônia como uma área ainda não conquistada, um imenso estoque de terra pronto
para virar pasto. E mais, a Amazônia como fonte inesgotável de madeira, peixe,
ouro, alumínio, energia elétrica etc.
O Brasil virou pasto e nossa grande
contribuição à humanidade foi substituir a maior floresta tropical do planeta
em churrasquinho. As políticas públicas e a maior parte das empresas despreza
os 10.000 anos de convivência com a floresta tropical. Desta aprendizado passo
a passo, de descoberta do ser e viver. O Brasil trata as comunidades indígenas
e a caboclas como culturas “primitivas”, “bárbaras” e “demoníacas”. O mato, o
espaço do desconhecido, do que não pode ser controlado, é o antro do medo, da
escuridão. É no mato que estão os piores horrores.
Não haverá aqui uma inversão de
valores? Estamos prontos a reconhecer este erro? Ou continuaremos a nos ufanar
que temos o maior rebanho comercial do planeta? Que nossos bois são “bois
verdes”, comem só capim?
Vamos continuar a nos enganar?
Seremos honestos com as futuras gerações? Quem está disposto a pensar um novo
Brasil? Seremos os bois-de-presépio da vez, que sentam-se na lanchonete e
devoram silenciosos seus hambúrgueres?
O desafio
Cabe a nós, e tão somente a nós
todos, sermos diligentes e eficientes em propor um novo pacto civilizatório
para a Amazônia, capaz de diminuir a pressão sobre as populações nativas e o
meio ambiente. Seus 23 milhões de habitantes, com amplas necessidades de
consumo, inclusive de proteínas, demandam respostas rápidas.
Mais do que rebanhos de consumidores, de
cabeça baixa, nossa ignorância alimenta a injustiça e a destruição. Afinal,
come-se a Amazônia três vezes ao dia, no café-da-manhã, no almoço e no jantar.
Deste total há 7 milhões de habitantes na zona rural, dos quais cerca de 2
milhões vivem em trinta mil comunidades tradicionais, em sua maioria com acesso
precário a serviços públicos de educação, saúde, água, esgotos, energia,
segurança e assistência técnica agrícola.
Não estará na hora de nos
transformarmos de destruidores em enriquecedores da natureza. Será que não
bastam os 75 milhões de hectares já desmatados da Amazônia (área superior a
toda área agrícola do país) para revolucionarmos nossa compreensão de floresta
tropical produtiva?
Não será a hora de formarmos
agricultores da sustentabilidade (permacultores), guarda-parques, guias de
ecoturismo, artesãos, madeireiros cuidadosos, cientistas e estudiosos do saber
local? E nós, continuaremos a ser meros
telespectadores? Corrigindo, na verdade, somos mais que telespectadores, somos
os que financiam este processo, silenciosamente, nas gôndolas de supermercado,
nos espetinhos, nos pastéis de carne... Mais do que rebanhos de consumidores,
de cabeça baixa, nossa ignorância alimenta a injustiça e a destruição.
Aceitamos, silenciosamente, que as coisas continuem como estão.
Fonte: www.consciencia.net
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