É possível produzir e conservar no Cerrado?


Hoje um dos maiores pólos do agronegócio no Centro-Oeste, com cerca de 1,5 mil pivôs centrais para irrigação de monoculturas, o município goiano de Cristalina também abriga uma dezena de assentamentos onde agricultores familiares vindos de vários pontos do país fazem crescer hortaliças e grãos que chegam a grandes centros consumidores.
À frente do sindicato local de produtores rurais, William Souto é um dos agricultores que dividem o assentamento Poço Grande, onde lotes com até vinte hectares produzem quase 15 mil toneladas anuais de milho, feijão, mandioca, sorgo, arroz, soja, mel, leite, abóbora, hortaliças e temperos.
Os alimentos alcançam feiras e supermercados no Distrito Federal, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Paraná. Parte da produção é orgânica e abastece escolas, creches e asilos regionais.
O assentamento mantém a vegetação em sua reserva legal e nas margens do belo rio São Marcos, que naquele trecho forma um poço com quase 40 metros de profundidade. Tudo dentro da lei e sem nenhum prejuízo à agricultura.
“As áreas verdes são uma necessidade, não prejudicam a produção, oferecem sombra, lazer, descanso e melhoram o clima. Todas as 800 famílias ligadas ao sindicato mantêm as matas, não têm problemas de convivência entre produção e conservação”, ressaltou Souto.
Todavia, em breve parte das matas do assentamento será derrubada e replantada, devido ao alagamento provocado pela barragem da hidrelétrica de Batalha (Furnas), cem quilômetros ao sul. Poço Grande é conhecido pela riqueza em peixes como surubim, barbado, dourado e pintado.
“Haverá impactos e teremos o trabalho de replantar o que for degradado. Mas também temos a oportunidade de vender alimentos diretamente para hotéis e outros empreendimentos que devem se instalar com o enchimento do lago”, comentou Souto.
Lagoa recuperada Com as margens desmatadas para produção de carvão e alvo de uma drenagem para produção de soja e arroz, a lagoa do assentamento Vitória, também em Cristalina, definhava a olhos vistos. O panorama de degradação começou a mudar há cinco anos, quando os agricultores estancaram a saída de água e passaram a replantar árvores frutíferas e nativas do Cerrado nas suas margens.
“Até 2009, a lagoa sumia a cada seca. Desde então, temos conseguido manter a água o ano todo. Nossa intenção é de que ela volte a ser navegável, que volte a ter peixes”, contou o produtor familiar Levi Cerqueira.
O assentamento também vai recuperar veredas erodidas e desmatadas pelo agronegócio predatório que ocupava parte de seus 1,4 mil hectares, divididos entre 48 famílias. “Sem isso, córregos ficarão assoreados, prejudicando o abastecimento de água”, reforçou Cerqueira.
Assim como em outros assentamentos de Cristalina, as mudas para recuperação de áreas degradadas são produzidas em viveiros apoiados pela Rede Terra, há 12 anos difundindo a agroecologia e o respeito à lei entre produtores familiares e apoiando a comercialização de seus produtos.
Padrão europeu Economista e agrônomo, o paulista Rubens Valentini chegou à região do Programa de Assentamento Dirigido do Distrito Federal (PAD/DF) nos anos 1970, onde experimentou a produção de limão irrigado, de cabras e de peixes. Todavia, o sucesso comercial veio na carona da criação de suínos, atividade já com 25 anos.
Usando uma espécie dinamarquesa adaptada ao Cerrado, ele mantém mais de 3,7 mil matrizes responsáveis por quase duzentos nascimentos semanais na Granja Miunça. Na idade correta, os animais vivos são todos vendidos a abatedouros no Distrito Federal. Quase cem funcionários tocam a atividade, que inclui uma fábrica própria de ração.
A ampliação em curso da fazenda atende a critérios europeus para uma criação mais amigável dos animais, toda a alimentação é controlada por computadores e os efluentes são direcionados a grandes tanques onde são dissolvidos e despoluídos.
Até o fim do ano, até 2 mil metros cúbicos diários de gás metano produzido pela decomposição do material serão captados e totalmente usados na geração de energia e aquecimento dos berçários.
As matas na reserva legal e nas áreas de preservação permanente estão cercadas para afastar as cerca de 400 cabeças de gado para corte, abrigando um Cerrado vigoroso e nascentes. “Hoje, para produzir não se precisa mais depredar. Nunca tive qualquer prejuízo mantendo essas áreas, já com 30 anos de preservação”, ressaltou.
Força nacional - Com três fazendas próprias e outras unidades arrendadas, a Agrícola Wehrmann é hoje uma das maiores produtoras brasileiras de batata, cenoura, cebola, alho e hortaliças irrigadas certificadas, além de sementes de soja e de milho.
A comercialização atende majoritariamente grandes redes de supermercados no país, enquanto parte chega ao Uruguai, Itália e Espanha. Há cerca de 1,2 mil empregados, enquanto mais de duas mil pessoas trabalham a cada colheita. A área produtiva está em expansão e os processos são revisados para se reduzirem as perdas e o desperdício.
Além de preservar a vegetação nas margens de rios e córregos e na reserva legal das propriedades, a empresa mantém desde o ano 2000 um viveiro de mudas nativas do Cerrado, com espécies como cagaita, jatobá e angico. Já foram plantadas por volta de setecentas mil mudas em áreas degradadas, antigas pastagens e entorno de nascentes. Também são feitas doações a escolas.
Tudo recebe adubo produzido no local. “Também estamos buscando tecnologia para reduzir o consumo de água na irrigação e sempre associando as melhores variedades ao clima e solo regionais”, comentou Mariana Meloni, responsável pelo Controle de Qualidade e Certificação.
Paisagens sustentáveis Conforme o coordenador do Programa Cerrado-Pantanal do WWF-Brasil, Michael Becker, respeitar a legislação é possível e necessário para a produção no campo, pois a vegetação nativa oferece serviços essenciais como polinização, proteção da água e controle do clima.
Todavia, a ampla possibilidade de desmatamento legal oferecida pela legislação que controla o uso da terra no Cerrado precisa ser reforçada com a conexão dos fragmentos que dominam o bioma. “Governos, produtores e entidades civis precisam atuar conjuntamente para que esses fragmentos florestais sejam interligados, formando paisagens sustentáveis e gerando benefícios ao país”, ressaltou.
De acordo com o produtor Rubens Valentini, da Granja Miunça, as tecnologias hoje disponíveis para a agropecuária precisam ser difundidas com base em capacitação e acompanhamento técnicos. “O produtor rural de hoje precisa ter muitas competências”, lembrou.
“Também são necessários estímulos econômicos e tecnológicos que levem a uma mudança de cultura nacional (evitando ainda mais degradação)”, completou. Alguns caminhos para a reforma de um código florestal realmente brasileiro.

Fonte: Aldem Bourscheit - Matéria site WWF  de 08 de julho de 2011 

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