MATA ATLÂNTICA - Fauna Invisível
A Mata Atlântica abriga uma das
maiores concentrações de biodiversidade do planeta. Sob a guarda de sua copa
vivem mais de 2 mil espécies de animais, incluindo o maior macaco (o muriqui),
o maior felino (a onça-pintada) e o maior herbívoro (a anta) das Américas
tropicais — só para citar alguns de seus habitantes mais ilustres, sem contar
os insetos. Mas onde estão todos esses bichos, que quase ninguém vê?
Caminhar pela Mata Atlântica em
busca de animais é com frequência uma aventura frustrante. Pode-se andar por
horas, ou até dias, na floresta sem ver nada além de algumas borboletas e
passarinhos, talvez um macaco. Cinco séculos de depredação e ocupação humana
saquearam a mata de sua fauna original, a ponto de muitos pesquisadores se
referirem a ela hoje como uma “floresta vazia”.
Esvaziada, sem dúvida, porém não
morta. Novas pesquisas, impulsionadas pela revolução tecnológica das armadilhas
fotográficas (câmeras escondidas na selva, que registram a passagem dos
animais), retratam a resiliência da vida no interior dos últimos grandes
remanescentes de Mata Atlântica do País, onde antas, onças e outros bichos
selvagens ainda encontram espaço para se refugiar do homem. Os animais
continuam lá, ainda que em menor número.
FAUNA
INVISÍVEL REVELADA
É noite na Mata Atlântica. Uma
anta caminha tranquila com seu filhote pelo interior do Parque Estadual Carlos
Botelho, no Vale do Ribeira, região sul do Estado de São Paulo. O pequeno pausa
para bisbilhotar uma planta, depois aperta o passo para não se distanciar da mãe.
Predadores podem estar à espreita. Não muito longe dali, no Parque Estadual
Intervales, uma onça-pintada fareja o solo em busca do cheiro de uma presa ou,
quem sabe, de uma parceira para se acasalar. No topo das árvores, uma família
de muriquis descansa em segurança, depois de um dia coletando frutos e
espalhando sementes pela floresta; enquanto que mais ao leste, na reserva
Legado das Águas, um casal de cachorros-do-mato-vinagre deixa a toca (roubada
de um tatu-galinha no dia anterior) para caçar.
Cenas como essas ainda ocorrem
com frequência nas profundezas da Mata Atlântica; mas estão cada vez mais
raras. Mesmo pesquisadores experientes, que dedicam a vida ao estudo desses
animais, raramente têm a oportunidade de observá-los ao vivo no interior da mata,
tendo de se contentar com pegadas, fezes e restos de comida para extrair pistas
sobre o seu comportamento. Não foi à toa que os habitantes da Mata Atlântica
ganharam o apelido de “fauna invisível” — termo cunhado pelo fotógrafo Luciano
Candisani, após anos documentando esses bichos na natureza.
“Embora represente uma das
maiores concentrações de biodiversidade do planeta, a fauna da Mata Atlântica é
uma das mais difíceis de ser observada. Você anda, anda, anda por horas dentro
da mata e não vê nada”, relata, por experiência, a bióloga Sandra Cavalcanti,
presidente da ONG Instituto para a Conservação dos Carnívoros Neotropicais,
mais conhecida como Instituto Pró-Carnívoros (IPC).
PREOCUPAÇÃO
Essa “invisibilidade” pode ser
atribuída a uma combinação de fatores naturais e antrópicos (causados pelo
homem), segundo os pesquisadores. É natural que seja difícil avistar animais
numa floresta tropical, pois a visibilidade é restrita, não faltam lugares para
se esconder e os bichos percebem a presença das pessoas muito antes do
contrário. Por outro lado, não há dúvida de que o número de animais seria bem
maior sem a interferência humana.
Em áreas sob forte pressão de
caça, a quantidade de mamíferos de médio e grande porte na floresta chega a ser
98% menor, segundo Galetti. “A Mata Atlântica hoje é uma floresta vazia, com
alta diversidade, porém baixa abundância”, afirma ele.
“Andar na Mata Atlântica sem ver
bicho nenhum é profundamente antinatural”, diz o biólogo Fernando Fernandez, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), especialista em ecologia
populacional de mamíferos. “A gente se acostumou a essa situação e pensa que é
normal, mas não é.”
Ainda que o número de
onças-pintadas “capturadas” no projeto de Sandra em 2011 tenha sido maior do
que o esperado, sua situação é frágil. A espécie é considerada criticamente
ameaçada de extinção na Mata Atlântica, com uma redução de 80% da sua população
efetiva nos últimos 15 anos. Hoje, estima-se haver menos de 250 indivíduos
sobreviventes em todo o bioma.
No contínuo florestal da Serra de
Paranapiacaba (uma área de quase 3 mil km²), o número de onças-pintadas
registradas não chega a 20. “É uma população pequena demais para ser viável”,
alerta a pesquisadora Beatriz Beisiegel, do Centro Nacional de Pesquisa e
Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap) do ICMBio, que monitora onças na
região desde 2006. “Numa situação dessas, qualquer desequilíbrio pode levá-la
ao colapso.”
Em outros lugares, é possível que
isso já tenha acontecido. No emblemático Parque Estadual da Serra do Mar, são
raríssimos os registros de onça-pintada nos últimos dez anos. “Ela está lá, mas
é praticamente um fantasma”, diz o biólogo Peter Crashaw, um pioneiro da
pesquisa com onças-pintadas no País. “É um estágio que eu chamaria da
funcionalmente extinta.” No Parque Nacional do Iguaçu, a situação também é
preocupante: o Instituto Pró-Carnívoros estima que o número de onças-pintadas
nas matas da unidade caiu de 100 para 20 nas últimas duas décadas, com risco de
a espécie desaparecer por completo de lá até o final deste século.
“A Mata Atlântica pode ser o
primeiro bioma do mundo a perder o seu predador de topo”, afirma Galetti. Logo
abaixo da onça-pintada na cadeia alimentar está a onça-parda, que é bem mais
abundante, mas não tem as características necessárias para assumir a “chefia”
do bioma. Ela é menor do que a pintada, bem menos exigente em termos de qualidade
ambiental e bem mais flexível em sua dieta, podendo comer desde ratos até
antas.
E se a coisa não está fácil para
as onças, não está fácil para ninguém. As duas espécies de muriqui também
correm risco de extinção; em especial o muriqui-do-norte, que se agarra à
sobrevivência em alguns poucos fragmentos de mata do Espírito Santo, Minas
Gerais e sul da Bahia. O porco queixada sumiu de boa parte do Vale do Ribeira,
apesar de ser abundante no Parque Estadual da Ilha do Cardoso, no extremo sul
do litoral paulista — tão abundante que chega a prejudicar a floresta, porque
não há onças-pintadas lá para controlar sua população.
HABITABILIDADE
Pesquisadores calcularam a
capacidade dos remanescentes da Mata Atlântica de abrigar as quatro
espécies-chave do bioma. Só 16% das florestas que restam conseguem abrigar as
quatro: anta, onça pintada, queixada e muriqui.
Há desequilíbrios por toda parte.
Pesquisadores, incluindo Galetti, estimam que 88% dos remanescentes de Mata
Atlântica do País já não possuem mais nenhuma dessas quatro espécies-chave:
onça-pintada, queixada, anta ou muriqui; sem as quais toda a biodiversidade da
floresta fica comprometida. Apenas 16% ainda mantêm condições naturais
propícias para abrigar todas elas — a maior parte, nas Serras do Mar e de
Paranapiacaba.
Outro estudo calcula que a Mata
Atlântica precisaria ter no mínimo 30% de sua cobertura vegetal original
preservada — mais que o dobro do que ela tem hoje — para garantir a
sobrevivência da maioria de suas espécies. “Menos do que isso, e a
biodiversidade começa a declinar rapidamente”, diz o ecólogo Jean Paul Metzger,
da Universidade de São Paulo, responsável pelo trabalho.
Os cientistas torcem para que as
imagens registradas pelas armadilhas fotográficas capturem também a atenção do
público e das autoridades, a tempo de evitar que o adjetivo “invisível” se
torne sinônimo de “inexistente”.
ORGANOGRAMA
FLORESTAL
Os registros de onças-pintadas
são especialmente relevantes para os cientistas por causa do papel fundamental
que a espécie exerce no organograma ecológico da floresta. Segundo Galetti, a
onça-pintada é como o executivo-chefe (CEO) de uma grande empresa. “É ela quem
organiza e controla todo o ecossistema”, diz o pesquisador. “Se você perde esse
CEO, a empresa não funciona direito.”
Outra figura fundamental nesse
organograma florestal é a presa favorita da onça-pintada: o queixada, um porco
selvagem que se alimenta das sementes de palmeiras e que, na sua constante
busca por comida, acaba atuando como um “engenheiro de ecossistemas”. Ao
caminharem pela mata em grandes bandos, pisoteando, cavoucando, revirando e
mordiscando tudo que encontram pela frente, os queixadas introduzem uma
necessária pitada de caos no sistema, que ajuda a floresta a se manter dinâmica
e se renovar continuamente.
Já os muriquis-do-sul, também
conhecidos como mono-carvoeiros (por causa do rosto negro, que parece sujo de
carvão), têm um papel fundamental na dispersão de sementes, que eles carregam
em seu ventre por longas distâncias após se alimentar dos frutos das árvores.
São os “jardineiros da mata”, nas palavras do pesquisador e primatólogo
Mauricio Talebi, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp),
campus Diadema, e coordenador científico da Associação Pró- Muriqui. Sem esses
grandes macacos peregrinando pelo topo da mata, a distribuição de várias
espécies de árvores ficaria comprometida.
“A equação é simples: Você planta
muriqui e colhe floresta”, resume Talebi. “Sem o muriqui, a floresta perde
diversidade.”
A anta exerce um papel semelhante
na dispersão de sementes — especialmente sementes grandes, que só ela tem
condições de comer. Maior herbívoro do continente, podendo pesar mais de 250
kg, ela abre trilhas por onde passa, conhecidas como “carreiros de anta”, que
outros animais — incluindo seres humanos — utilizam para se locomover dentro da
selva. Encontrar seus rastros é fácil; mas ver uma anta na floresta é difícil.
Apesar do tamanho, é uma espécie discreta e de olfato aguçado, que raramente se
deixa ser vista pelo homem.
AMEAÇAS
A caça e a extração ilegal de
palmito juçara são problemas crônicos e disseminados na Mata Atlântica,
inclusive dentro das unidades de conservação do Estado, que carecem de recursos
e de infra-estrutura suficientes para combatê-los. Se Soneca teve o azar de cruzar
caminhos com um palmiteiro armado, é bem possível que tenha levado um tiro.
Especialmente no Penap, que passados três anos da sua criação ainda não possui
nenhum guarda-parque, guarita, cerca ou mesmo uma placa na estrada sinalizando
a sua existência. “É um parque de papel”, lamenta Martensen, que já cansou de
ver palmiteiros e caçadores circulando pela unidade.
Apesar do silêncio do rádio, a
viagem não foi em vão. Se por um lado não encontramos sinal do colar, também
não encontramos sinais de interferência humana na área onde Soneca desapareceu
— apesar de termos topado com algumas palmeiras cortadas no início da trilha. A
floresta estava intacta ao nosso redor, sem evidências de trilhas clandestinas
ou extração ilegal de palmito, o que diminui a probabilidade de ela ter sido
morta por palmiteiros, pelo menos naquele ponto. “Tiramos uma dúvida
importante: ela não está aqui”, afirma Beatriz.
É preciso levar em conta, porém,
que a coleira só enviava dados para o satélite a cada 18 horas, o que significa
que Soneca pode ter se deslocado vários quilômetros desde a sua última
transmissão até o local onde ela de fato desapareceu. Encontrar a coleira — ou
a onça, viva ou morta — é a única maneira de saber o que de fato aconteceu.
A hipótese de mau funcionamento
do GPS não pode ser descartada, mas se Soneca estivesse viva, Beatriz acredita
que a onça já teria passado por alguma das armadilhas fotográficas que ela
mantém espalhadas pelas matas da região. A não ser que ela tenha se deslocado
para alguma outra área distante, sem monitoramento.
Distância não seria problema. Se
tem uma coisa que os cientistas sabem sobre essa onça é que ela gostava de
andar, e muito. Nos quatro meses em que o colar funcionou, Soneca circulou por
uma área de mais de 700 quilômetros quadrados (equivalente a metade do
município de São Paulo), atravessando cinco áreas protegidas do grande corredor
de mata da Serra de Paranapiacaba.
Logo após ser capturada, Soneca
passou mais alguns dias circulando pelo Parque Carlos Botelho, depois seguiu na
direção sudoeste, acompanhando o fluxo das montanhas. Cinco semanas depois,
estava a 65 quilômetros dali, no sul do Parque Estadual Intervales. No início
de setembro, resolveu investigar as matas da Estação Ecológica Xituê. Alguns
dias mais tarde estava farejando presas na Fazenda Nova Trieste, uma reserva
particular de 300 km², adjacente aos parques. No fim do mês voltou para Carlos
Botelho, passando novamente pela estrada onde foi capturada; e em outubro foi
se aventurar por entre as nascentes do Penap, onde desapareceu.
Ao todo, o colar enviou mais de
1,2 mil pontos de localização, quase todos eles bem no interior da mata.
Raramente Soneca se aproximava das bordas da floresta, como se quisesse manter
distância do homem — o que, aparentemente, não evitou que ela fosse morta.
IMPLICAÇÕES
As implicações desse
monitoramento para as políticas de conservação da Mata Atlântica são imensas.
Já faz tempo que os cientistas vêm propondo que as onças-pintadas circulam por
grandes áreas de floresta, muito maiores do que os limites individuais das
unidades de conservação do bioma, e que por isso é preciso planejar a gestão
dessas áreas de maneira integrada; mas faltavam dados brutos para demonstrar
isso. Agora, graças às andanças de Soneca, não faltam mais.
“Os dados da Soneca cumprem um
papel que, institucionalmente, a gente nunca conseguiu cumprir, que é fazer com
que esse mosaico todo se integre”, diz o gestor do Parque Estadual Carlos
Botelho, José Luiz Camargo Maia. “Ela está fazendo muita gente acordar.”
“A ideia de que uma onça-pintada
pode viver dentro de uma unidade de conservação pode ser descartada”, confirma
Beatriz. “A área de vida dela é praticamente o mosaico de Paranapiacaba
inteiro. Não adianta proteger uma unidade se a outra ao lado dela está
infestada de palmiteiros.”
“Mesmo se tratando de um único
animal, fica clara a importância desse mosaico para a conservação da espécie”,
afirma Ronaldo Morato, chefe do Cenap-ICMBio e responsável pelo projeto.
Especialista em grandes felinos, ele já esperava que a área de uso da
onça-pintada na Mata Atlântica fosse grande — mas não tanto assim. “É um
resultado impressionante”, diz. O maior registro com esse tipo de coleira para
uma onça-pintada no Pantanal, por exemplo, não chega a 200 km².
Analisando o mapa de pontos da
Soneca, é possível identificar alguns lugares onde ela ficou estacionária por
alguns dias, provavelmente para capturar e devorar alguma presa. Em dois desses
aglomerados de pontos que Beatriz já conseguiu visitar, ela encontrou carcaças
de antas — um animal grande, que adulto pode pesar quatro ou cinco vezes mais
do que uma onça.
Essa combinação dos dados de
satélite com observações de campo está provando ser uma ferramenta poderosa de
pesquisa. Beatriz nota também que Soneca costumava passar bastante tempo ao
redor de árvores frutíferas, que servem de atrativo para antas, queixadas e
outros herbívoros, talvez como uma estratégia de tocaia para surpreender esses
animais. Outra surpresa foi constatar que ela se locomovia bastante por áreas
de crista de morro, onde a mata é mais densa, que a pesquisadora pensava serem
usadas apenas pelas onças-pardas, que são menores e mais esguias do que as
pintadas.
Até agora, Beatriz já visitou
cerca de cem pontos da Soneca. “O ideal seria checar todos, mas há vários que
eu sei que nunca vou conseguir, porque são muito isolados.”
PERDIDOS
NA SELVA
A Mata Atlântica é um ambiente
dificílimo de se trabalhar, especialmente em áreas montanhosas. Trechos de
poucos quilômetros podem facilmente se transformar em caminhadas massacrantes.
Nosso retorno do último ponto da
Soneca no Penap acabou se transformando numa aventura brutal. Desorientados
pela mata densa, a chuva forte e a escuridão, eu, Beatriz, Martensen, nosso
guia e o videógrafo Wellington Moreira acabamos nos perdendo e tendo de varar a
noite caminhando por dentro de rios e matas geladas. Não tínhamos comida e
vestíamos apenas casacos leves, que, encharcados, não serviam para nada naquele
frio de serra. O GPS nos mostrava a direção do carro, mas era impossível andar
em linha reta. A topografia e a mata a todo momento nos empurravam para dentro
de algum rio ou barranco traiçoeiro.
No fim das contas, começamos a
andar às 7h30 de uma quinta-feira, 18 de junho, e só conseguimos chegar de
volta ao carro às 11h30 do dia seguinte, 28 horas depois, completamente
esgotados e bastante avariados. Foi sorte ninguém ter se machucado gravemente.
Martensen — conhecido como Tank, por causa da sua semelhança com o ex- lutador
de MMA Tank Abbott — andou mais de 12 horas com um pé descalço, depois que a
sola de seu coturno foi arrancada por sucção no fundo de um lamaçal.
Beatriz mal conseguia falar ao
final da trilha, depois de caminhar a noite toda tremendo compulsivamente, com
fortes sintomas de hipotermia. Pensamos várias vezes em parar para descansar e
talvez acender uma fogueira, mas a chuva e o frio não davam trégua. Um ou dois
minutos parados e o corpo já começava a trepidar. A única maneira de nos manter
minimamente aquecidos era continuar caminhando.
Na manhã seguinte, mesmo depois
de um banho quente e uma boa noite de sono, a xícara do café da manhã ainda
tremia nas mãos de Beatriz. Três dias depois, inabalável, ela estava de volta
na mata, em busca da Soneca.
O DESAFIO
DA CONSERVAÇÃO
Olhando de cima, parece tudo bem.
Nas imagens de satélite, a floresta segue em pé, aparentemente intacta, com o
desmatamento em queda há vários anos e já reduzido a praticamente zero nas
unidades de conservação do Estado de São Paulo. Por baixo da copa das árvores,
porém, a realidade é bem mais preocupante do que se pode ver do espaço.
Infestada de caçadores e
palmiteiros, a Mata Atlântica segue sendo saqueada de suas riquezas biológicas,
tal qual uma fortaleza abandonada. No lugar de motosserras e tratores, quem
mais ameaça a sobrevivência do bioma hoje em São Paulo são as espingardas e
machetes daqueles que ganham a vida com a extração ilegal de palmito juçara.
“A floresta está sendo corroída
por dentro”, diz a bióloga Beatriz Beisiegel, do Centro Nacional de Pesquisa e
Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap) do ICMBio, que há dez anos trabalha
com monitoramento de fauna nas regiões do Vale do Ribeira e Serra de
Paranapiacaba. Das 1.173 espécies ameaçadas de extinção no Brasil, 431 só
existem na Mata Atlântica.
“Estamos criando florestas
vazias. A mata continua lá, mas quase não tem mais animais”, sentencia Mauro
Galetti, pesquisador da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro,
especialista nesse processo de “defaunação”.
Não se trata apenas de uma
questão estética. A longo prazo, a diminuição do número e da diversidade de
animais corrói as bases ecológicas de sustentação da floresta, tornando-a mais
vulnerável, menos produtiva e comprometendo sua capacidade de prestar serviços
ecossistêmicos essenciais, como a produção de água, estocagem de carbono e
regulação do clima. A longo prazo, uma mata sem bichos está condenada a se
tornar “mato”.
“Para ter uma floresta saudável
não basta um conjunto de árvores. É preciso ter a fauna dentro dela, interagindo
com as plantas e cumprindo seu papel dentro do ecossistema”, diz a pesquisadora
Sandra Cavalcanti, do Instituto Pró-Carnívoros. Muitas espécies de plantas
dependem diretamente — e às vezes exclusivamente — de animais para serem
polinizadas e dispersar suas sementes.
A jacutinga, por exemplo, é a ave
mais importante para dispersão de sementes de palmito juçara na floresta, e já
foi caçada até a extinção (ou muito próximo disso) na maior parte da Mata
Atlântica. “Não adianta só proteger a mata; temos de trazer esses animais de
volta”, alerta Pedro Develey, diretor científico da Sociedade para a
Conservação das Aves do Brasil.
Os palmiteiros induzem a
defaunação de duas maneiras. Primeiro, matando animais para comer quando estão
na selva. Segundo, pelo efeito dominó que a remoção da palmeira juçara tem
sobre toda a biodiversidade da floresta, impactando desde os herbívoros que se
alimentam de seus frutos superenergéticos (semelhantes aos do açaí), até os
predadores de topo de cadeia que se alimentam desses herbívoros, como a
onça-pintada e a onça-parda.
“O juçara é a base da cadeia
alimentar na Mata Atlântica. Quando você retira o palmito, a floresta inteira
sofre”, resume o biólogo Thiago Conforti, gestor do Parque Estadual Intervales.
O problema é disseminado por todas as unidades de conservação do Estado, que
têm recursos insuficientes para combater o crime. “Estamos praticamente todos
os dias com gente no campo, e ainda assim o problema persiste”, reconhece
Conforti. Em 2014, os guarda-parques da unidade realizaram mais de 300
operações de fiscalização. “Ainda assim, a capacidade de ação dos criminosos é
maior do que a nossa capacidade de fiscalização.”
Os palmiteiros — na sua maioria,
moradores dos bairros rurais que fazem fronteira com os parques — abrem suas
próprias trilhas e podem passar vários dias embrenhados na floresta cortando
palmito. Alguns chegam a montar ranchos e até fabriquetas no meio da mata, para
processar e envasar o produto ali mesmo.
Em municípios como Eldorado,
Registro e Sete Barras, que nasceram de garimpos no século 17, o palmito juçara
é uma espécie de “ouro branco” moderno, que o moradores de baixa renda garimpam
da floresta para sobreviver, vendendo o produto a atravessadores. A região mais
rica em florestas de São Paulo é também a mais pobre e menos desenvolvida
economicamente do Estado.
“Melhorar a fiscalização nos
parques é essencial, mas não basta”, diz o geógrafo Mauricio Marinho, consultor
socioambiental e ex-gestor de Intervales. Segundo ele, é preciso dar alternativas
econômicas às populações locais, para quebrar sua dependência do palmito.
“Enquanto as questões sociais do entorno não forem resolvidas, o problema vai
continuar.”
Frequentemente, palmiteiros e
caçadores são as mesmas pessoas. Mas há também o problema da caça esportiva,
praticada por pessoas “de fora” da região, que entram na mata fortemente
armadas, em busca de troféus e adrenalina.
“Matam qualquer coisa que
aparecer na frente”, diz o capitão da Polícia Militar Ambiental no Vale do
Ribeira, Edson Moraes. Em 2014, uma onça-pintada foi morta no Rio Taquari por
um motorista de caminhão que caçava por esporte. A cabeça do animal foi
arrancada e levada como troféu, a exemplo do que aconteceu com o leão Cesil, no
Zimbábue, no caso que comoveu o planeta em julho deste ano. Quatro pessoas
foram presas na ocasião, com sete armas de fogo, segundo Moraes. Mas a cabeça
da onça nunca foi encontrada.
Cientistas reclamam da falta de
segurança e de infraestrutura nas unidades de conservação do Estado. “Os
pesquisadores estão fugindo dos parques, porque se tornaram lugares perigosos”,
afirma Galetti. “Desde quando comecei meus trabalhos de campo, na década de
1980, a situação piorou muito. A proteção é quase nula.”
“O abandono também destrói a
biodiversidade”, diz Marcia Hirota, diretora-executiva da Fundação SOS Mata
Atlântica e coordenadora do programa de monitoramento via satélite do bioma,
realizado desde 1990, em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais.
FRAGMENTAÇÃO
E CONECTIVIDADE
O grande manto verde da Mata
Atlântica, que na sua plenitude cobria 15% do território brasileiro (1,3 milhão
de km²), hoje está reduzido a uma colcha de retalhos, de 310 mil fragmentos,
que somados não chegam a 13% da extensão original do bioma.
Mais de 80% desses fragmentos têm
menos de 50 hectares. O ponto mais remoto da Mata Atlântica hoje, para se ter
uma ideia, está a apenas 12 km de uma borda. Ele fica na Fazenda Nova Trieste,
uma grande reserva privada de floresta, de 300 km², bem no miolo do mosaico de
áreas protegidas da Serra de Paranapiacaba — que inclui quatro Parques
Estaduais (Turístico do Alto Ribeira, Intervales, Nascentes do Paranapanema e
Carlos Botelho), uma Estação Ecológica (Xituê) e a Área de Proteção Ambiental
(APA) da Serra do Mar.
A conservação desse mosaico, de
quase 3 mil km², é crucial para o futuro de toda a Mata Atlântica, pois é o
único bloco ainda grande e preservado o suficiente para abrigar toda a
biodiversidade original do bioma. Uma espécie de “Arca de Noé”, que pode ser
usada para repovoar outros fragmentos de floresta onde esse patrimônio já foi
perdido.
“Todas as espécies que um dia
existiram na Mata Atlântica ainda estão ali”, diz o primatólogo Mauricio
Talebi, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da
Associação Pró-Muriqui, que frequenta as matas da região desde 1993. “É a
principal fonte de biodiversidade que nos resta na Mata Atlântica”, reforça
Galetti. “Se secarmos essa fonte, não teremos outra; é nossa última chance.”
UNIDADES
DE CONSERVAÇÃO
O Brasil assumiu neste ano o
compromisso de restaurar 120 mil km² de floresta até 2030, e uma grande parte
desse reflorestamento — exigido pelo Código Florestal — deverá ocorrer na Mata
Atlântica. Além disso, há um processo natural de regeneração em áreas
previamente desmatadas que vem ganhando espaço nos últimos anos, segundo o o
ecólogo Jean Paul Metzger, da Universidade de São Paulo (USP).
Para que essas florestas em
regeneração possam um dia abrigar uma biodiversidade semelhante à de uma
floresta primária, os animais que vão habitá-las precisarão vir de algum lugar.
Daí a importância de preservar a conectividade biológica entre grandes e pequenos
fragmentos, por meio dos chamados “corredores ecológicos” — que não devem ser
pensados como túneis lineares de florestas, mas como um mosaico de paisagens,
que permita aos animais transitar de uma área de floresta para outra em
segurança.
“As exigências desses corredores
variam de espécie para espécie. Para algumas, a ligação física entre as
florestas é importante; para outras, não”, explica Metzger. Onças-pardas, por
exemplo, podem atravessar pastos e canaviais com facilidade. Passarinhos e
pequenos roedores também. “O que importa é a conectividade da paisagem como um
todo.”
Sem essa conectividade, mesmo
grandes manchas de floresta correm o risco de se transformar em ilhas isoladas
de biodiversidade, fadadas ao desgaste. O Parque Estadual do Morro do Diabo, no
extremo oeste paulista, e o Parque Nacional do Iguaçu, no oeste paranaense, são
dois exemplos de fragmentos de mata “ilhados” no interior do país,
desconectados dos grandes remanescentes de floresta no litoral.
TRAVESSIA
ATLÂNTICA
“O melhor dos mundos” que resta
na Mata Atlântica, segundo Metzger, é o grande corredor de floresta que ainda
corre sobre as montanhas costeiras do Sul e Sudeste. E mesmo ali, a
conectividade não deixa de ser um desafio.
Em teoria, um bicho corajoso
poderia sair do norte de Santa Catarina e chegar ao sul do Rio de Janeiro
viajando quase que exclusivamente por dentro da mata. Mas é uma travessia
perigosa; até mesmo para uma onça-pintada.
A Serra de Paranapiacaba,
localizada no centro desse grande corredor, concentra a maior população de
onças-pintas da Mata Atlântica. A espécie, porém, é extremamente rara nos seus
dois fragmentos vizinhos: o Mosaico do Jacupiranga, ao sul, e o Parque Estadual
da Serra do Mar (PESM), ao norte; apesar de haver bastante conectividade física
entre eles. “Aqui ainda temos onça-pintada”, diz o gestor do Parque Estadual
Intervales, Thiago Conforti. “O desafio é fazer com que essas onças possam
chegar em segurança até Parati” — e voltar de lá para Intervales, se assim
quiserem, completa ele.
Tal travessia passa
obrigatoriamente pelo Legado das Águas, uma grande reserva particular do grupo
Votorantim, localizada estrategicamente entre a Serra de Paranapiacaba e os
Parques Estaduais da Serra do Mar e do Jurupará. A expectativa é grande de
encontrar uma onça- pintada por ali. Pesquisadores do Instituto Pró-Carnívoros
(IPC) e o fotógrafo Luciano Candisani vêm trabalhando há três anos na
propriedade para documentar a biodiversidade de seus 310 km² de floresta.
Utilizando armadilhas fotográficas e outros métodos, já conseguiram registrar
mais de 20 espécies de mamíferos, incluindo várias onças-pardas e jaguatiricas.
Mas nenhuma onça-pintada até agora, apesar de a reserva oferecer todas as
condições necessárias à ocorrência da espécie.
Sandra Cavalcanti, coordenadora
do IPC, diz não estar preocupada. Ela acredita ser apenas uma questão de tempo
(e de amostragem) para que o maior felino das Américas seja encontrado na
reserva. “Não há razão para elas não estarem aqui”, diz.
SEGURANÇA
PRIVADA
O local com o maior número de
registros de onças-pintadas no mosaico é a Fazenda Nova Trieste, da empresa
Agro Industrial Eldorado (que, apesar do nome, não pratica atividades agrícolas
no local). Praticamente 100% dos seus 300 km² são cobertos de floresta
tropical, que o diretor do grupo, Gilberto Sulzbacher, faz questão de proteger
há mais de meio século, por iniciativa própria. “Eu acampava na propriedade
quando moleque, e ficou claro para mim que era preciso conservar aquela
floresta”, contou ele, em uma rara e exclusiva entrevista ao Estado. “Na época
era comum abrir áreas para tirar madeira, mas dali nunca foi tirado. O grupo
avaliou as evidências e concluiu que fazer qualquer coisa lá dentro seria uma
loucura, tanto ambientalmente quanto economicamente.”
No início de 2014, uma proposta
do governo do Estado para transformar a propriedade em Parque Estadual gerou
revolta entre ambientalistas e cientistas, que consideram a proteção da empresa
muito mais eficiente do que a do poder público.
“O Estado não dá conta das
unidades que tem e ainda quer criar mais?”, questiona o biólogo Alexandre
Martensen. Foi dele quem partiu, alguns anos atrás, a iniciativa de criar o
Parque Estadual Nascentes do Paranapanema (Penap), de 220 km², ao norte da Nova
Trieste. Em 2012, com a ajuda da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (RBMA),
ele conseguiu o que queria: O parque foi criado, com direito a anúncio na
badalada conferência Rio+20, das Nações Unidas.
Passados três anos, Martensen
quase se arrepende do que fez. O anúncio da criação do parque gerou uma
“corrida do palmito” dentro da unidade. Temendo a chegada das cercas e guaritas
de proteção, palmiteiros da região entraram na floresta e tiraram todo o
palmito que conseguiram. “Fizeram a limpa”, conta o biólogo. O palmito se foi,
mas as cercas e guaritas nunca chegaram. O parque continua a existir somente no
papel — não consta nem mesmo no site da Fundação Florestal, órgão responsável
pela gestão das áreas protegidas do Estado. “Às vezes tenho a sensação de que
foi até pior criar o parque”, lamenta Martensen.
Segundo a secretária de Meio
Ambiente do Estado de São Paulo, Patrícia Iglecias, está em discussão na
Fundação Florestal (órgão responsável pela gestão das unidades de conservação
do Estado) a criação de um “plano emergencial” de uso público do Penap. Não há,
porém, perspectivas para contratação de funcionários ou construção de
infra-estrutura no curto prazo.
Ainda assim, segundo ela, a
implementação dos parques e outras unidades de conservação é uma prioridade da
secretaria. “Temos de consolidar as áreas já existentes. Elas não podem
perpetuar em condições inadequadas”, disse. “Não significa que não vamos criar
novas (unidades), mas essa preocupação existe.” Das 105 unidades de conservação
do Estado, só 25 possuem planos de manejo.
Fonte: Herton Escobar - Estadão
Gostei bastante do trabalho de pesquisa. Dou a sugestão de quando adentrarem nas florestas, espalharem sementes de árvores frutíferas nativas que muito vão ajudar a fauna. E esta por sua vez dispersa por outros locais. Faço parte de uma ONG ecológica e fazemos isso! Abs e sucessos
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