Sistemas de unidades de conservação estão falidos


O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, sancionou na última sexta-feira (1 Julho 2016) um projeto de lei que permite conceder a gestão de 25 parques estaduais e unidades de conservação à iniciativa privada, entre eles parques como o da Cantareira, a Caverna do Diabo e o Petar. A nova lei causou confusão: São Paulo está privatizando seus parques?
O Blog do Planeta conversou sobre o assunto com Ana Luisa Da Riva, diretora executiva do Instituto Semeia. O Semeia defende a concessão de parques para o setor privado e trabalha com a criação de contratos e editais no setor há cerca de cinco anos. Ana Luisa diz que a lei não privatiza os parques, considera o projeto aprovado um avanço, mas vê alguns problemas, como o risco de criar "ilhas muito bem estruturadas para o turismo e parques mal conservados".
ÉPOCA - Faz sentido conceder parques à iniciativa privada?
Ana Luisa Da Riva - De uma maneira em geral, é caminho o correto. A gente tem hoje um sistema de unidades de conservação que está completamente falido. São Paulo não é diferente, o Estado não tem recursos para manter esse sistema, não tem como garantir uma estrutura mínima para que esses parques cumpram seu papel social. Quando olhamos para vários lugares do mundo, vemos que há muitos modelos de parcerias com o setor privado para apoiar o governo em prestação de serviços de atividades de conservação. Se aproximar do setor privado não é uma coisa nova, ninguém está inventando a roda. Já acontece lá fora, mas aqui no Brasil ainda estamos num debate incipiente e errado, como se fosse fazer privatizações.
ÉPOCA - Não é privatização?
Ana Luisa Da Riva - Não é. Privatização pressupõe uma alienação de bens, como a que foi feito com a telefonia. Nessa lei, os parques e as florestas continuam como propriedades públicas. O governo continua com a função suprema de dar as regras, monitorar, fiscalizar e ser o gestor. Simplesmente ele assume que precisa de braços, de parcerias com o setor privado para prover uma série de serviços – o turismo, a gestão dos recursos florestais –, os quais o governo não tem competência para fazer sozinho. Mas as terras são públicas. Ou seja, além de a gente ter começado essa agenda tardiamente, a gente começa com o debate errado. O debate poderia ser proativo, sobre os cuidados necessários para garantir que os parques gerem benefícios. Eu entendo que estamos no caminho certo, mas com a discussão errada.
ÉPOCA - Uma parceria prevê direitos e deveres para os dois lados, tanto do governo quanto da iniciativa privada. No caso dos parques, o que passa a ser a responsabilidade de cada um?
Ana Luisa Da Riva - Eu não poderia deixar de colocar um pouco a visão que o Semeia tem, e aí vem nossa maior crítica ao projeto. Nossa visão é que os parques existem para cumprir duas funções socias: a primeira é a conservação. Não só da biodiversidade, mas também de valores históricos, sociais e culturais. Você não pode imaginar nenhuma intervenção nesses parques que destrua esses valores. A segunda é a geração de oportunidades do entorno. Excluir o tecido social que está no entorno também não é benéfico. A concessão tem de partir da premissa que a conservação do parque e os benefícios para o entorno têm de ocorrer. A gente enxerga o turismo como uma ferramenta para gerar fluxo de caixa, para que essas funções sociais possam ser buscadas. Tudo bem o parceiro privado ter lucro. Mas ele precisa também conservar e desenvolver o entorno. Se você sabe quais são as demandas de conservação, o lucro é a solução, não o problema. O problema vem quando você tem uma visão utilitarista da concessão. É o risco de se criarem ilhas muito bem estruturadas para o turismo e parques mal conservados.
ÉPOCA - O projeto aprovado em São Paulo tem essa visão utilitarista?
Ana Luisa Da Riva - O texto poderia ter deixado isso mais bem amarrado. Está no caminho certo, mas poderia ter deixado o turismo como ferramenta, não como fim. No modelo em que o Semeia defende, o serviço prestado, o objeto contratual, é a entrega da conservação e da geração de oportunidades no entorno. Essa entrega é feita por meio do fluxo de caixa gerado pelo turismo. Não é o turismo a entrega final. Já na lei, o turismo é o objeto fim. Ele poderia ter sido mais ambicioso em amarrar esses anseios de conservação.
ÉPOCA - Como as concessões são feitas no exterior? Nós conhecemos algum bom modelo, que sirva de exemplo para o Brasil?
Ana Luisa Da Riva - Temos o modelo dos parques americanos, que eu diria que tem muitas falhas. Essas falhas são importantes porque nos mostram o que não fazer. O sistema americano tem 100 anos. Recentemente o presidente Barack Obama fez um discurso em que ele elogiou os visionários que, há um século, decidiram investir em parques. O modelo americano é importante. Tem falhas, porque em muitos casos o turismo excedeu, deixou de ser sustentável e prejudicou a conservação. Mas é um aprendizado. Podemos não repetir os erros. Isso é uma inspiração. A África do Sul tem um sistema muito bacana de gestão com as comunidades. Os parques são palco de concertos culturais, de congressos; eles foram democratizados, as pessoas vão aos parques. Há casos de parques cogeridos por comunidades. No sistema sul-africano, 80% dos recursos vêm das concessões. Eles começaram isso há 15 anos, na preparação para a Copa do Mundo [de 2010]. Lá também teve resistência, medo de que as concessões virassem privatizações, mas hoje os parques funcionam e o modelo não é mais questionado. Nova Zelândia, Austrália, Namíbia, Argentina, Chile... são vários países com um histórico de parcerias e concessões.
ÉPOCA - Com as concessões, as empresas poderão cobrar a visitação. Como garantir que os parques não fiquem elitizados?
Ana Luisa Da Riva - É absolutamente importante que não haja elitização dos parques, e que haja benefícios no entorno, a emancipação do entorno. Em muitos casos, pode de fato ser importante ter cobrança para visitação. Obviamente essa cobrança terá um limite definido pelo governo. Não é o setor privado que define isso. Também é preciso ter uma política de isenção tarifária. Isenção para idosos, para estudantes, para municípios vizinhos, para pessoas que recebem Bolsa Família. Para os que não se incluem nessas categorias, é o princípio do protetor-recebedor. Se você está recebendo um parque bem cuidado, conservado, é justo pagar. O visitante paga, mas também quer ver o parque bem cuidado e com estrutura.
As áreas protegidas do Brasil estão desprotegidas
Auditoria do TCU mostra que apenas 15% das unidades de conservação brasileiras contam com gestão adequada. O Brasil tem belezas naturais incríveis. Florestas, montanhas, cachoeiras, cavernas, praias. Para proteger essas áreas e permitir que os brasileiros contemplem a natureza, há uma grande rede de unidades de conservação (UC). No entanto, segundo uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), essas áreas não estão protegidas da forma adequada. Faltam recursos financeiros, humanos, infraestutura e, em alguns casos, há até conflitos fundiários. Apenas 15% das áreas protegidas do Brasil contam com gestão adequada.
O TCU analisou o atual estado da gestão das áreas protegidas no Brasil no ano passado, e comparou com os dados de outros 11 países da América Latina. O trabalho identificou fragilidade na fiscalização ambiental, dificuldades na promoção do turismo nos parques e baixa articulação entre governo e sociedade civil.
O estudo identificou que o Brasil cumprirá apenas parcialmente as metas de proteção do meio ambiente assumida em reunião das Nações Unidas em 2010, conhecidas como Metas de Aichi (Aichi é uma província do Japão onde fica Nagoya, cidade em que o protocolo foi assinado). Nesse documento, os países signatários se comprometeram a proteger 17% do território terrestre e 10% do território marinho até 2020. O Brasil vai cumprir a meta para área terrestre, mas não para as áreas marinhas. "No caso brasileiro, em que pese o país estar confortável em relação à meta de áreas protegidas terrestres (17,2% da área continental está protegido), o mesmo não se pode afirmar quanto ao percentual de áreas marinhas (1,5% da área marinha brasileira está protegida)", diz o relatório do TCU.
Segundo a auditoria, o governo tem planos para expandir a proteção das áreas marinhas, criando novas unidades de conservação e santuários no litoral brasileiro. Ainda assim, se todos os projetos forem cumpridos, o país terá apenas 5% de seu litoral protegido em 2020 e, portanto, não cumprirá a meta de 10%.
Mas o que mais preocupa na auditoria é que, nas áreas que estão protegidas, o TCU identificou uma quantidade muito grande de deficiências. Em vários critérios, a metodologia adotada mostra que o Brasil está até mesmo abaixo da média da América Latina. Nossos parques estão com problemas em monitoramento da biodiversidade, articulação, plano de manejo, recursos financeiros e uso público (ecoturismo).
O turismo nas áreas protegidas brasileiras é um dos pontos que mais decepcionam. As riquezas naturais brasileiras poderiam gerar renda e recursos para proteger a natureza, além de ser importante fonte de educação ambiental e lazer. Mas isso não acontece nos Parques Nacionais, a principal categoria de área protegida onde se pode ter ecoturismo. Mais da metade (52%) dos parques sequer está aberta para visitação. 85% dos parques não têm infraestrutura suficiente para atender o público, e 91% não têm funcionários o suficiente para cuidar das atividades turísticas. "Tais fatos contribuem para que o Brasil, considerado pelo Fórum Econômico Mundial como a maior potência turística do planeta em recursos naturais, ocupe apenas o 52º lugar em competitividade de turismo quando contabilizados outros fatores como a estrutura disponível nessas áreas", diz o texto.
Apesar dos problemas, o relatório também identificou pontos positivos nas unidades de conservação brasileiras. Segundo o TCU, as UCs realmente ajudaram a proteger espécies ameaçadas. Os animais que estão com o habitat protegido por um parque, por exemplo, correm menos risco do que as que estão fora.
No total, a auditoria avaliou a situação de 453 áreas protegidas. Foram 107 unidades de conservação federal e 140 estaduais na Amazônia, em 2013, e 206 unidades de conservação federais nos demais biomas em 2014. 

Fonte: Bruno Calixto - Revista Época

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