Ar condicionado resfria o ar, mas esquenta a atmosfera
Atire o primeiro pinguim de louça
quem não pensou nisso neste verão: está na hora de comprar um ar-condicionado.
Com a seca e as temperaturas batendo recordes no centro-sul do país, esse
eletrodoméstico virou um estranho objeto do desejo em lugares onde ele nunca
foi assim tão necessário, como São Paulo, Brasília e Porto Alegre. De artigo de
luxo, ou algo que só pertencia à vida doméstica de manauaras e cariocas, o
refrigerador de ar converteu-se quase em gênero de primeira necessidade. Muita
conversa de bar por aí tem terminado com brados para que o governo crie uma
bolsa-ar-condicionado.
Duas más notícias sobre isso: a
primeira é que, de fato, esses aparelhos provavelmente vieram para ficar na
maior parte do Brasil. O país já está mais quente, e a previsão dos cientistas
é que fique mais quente ainda nos próximos anos. Em 2014, ano em que as
temperaturas globais foram as maiores da história, o Sudeste brasileiro
registrou médias 1ºC a 2ºC superiores às do período 1961-1990, segundo a
Organização Meteorológica Mundial. Há menos dias frios no inverno e mais noites
quentes no verão. O calor senegalês (senegalês nada! Carioca! Em dezembro
passado, a sensação térmica no Rio bateu os 55ºC) que abriu 2015 é o que os
cientistas chamam de “novo normal”.
Usar mais condicionadores de ar é
uma reação natural de adaptação ao clima mais quente. No ano passado, essa
reação fez com que o consumo residencial de energia crescesse duas vezes mais
do que o total nacional. Com algumas exceções, essa tem sido a tônica desde o início
da série de resenhas da Empresa de Pesquisa Energética, em 1995: anos de calor
e seca fazem o consumo de energia das famílias elevar-se acima da média do
país. Em 1998, ano de El Niño, o crescimento foi de 7,1% contra 4,1%,
respectivamente. Em 2005, de 5,3% contra 4,4%. Em 2010, outro ano de
temperaturas extremas, a média nacional cresceu mais – mas lembre-se de que foi
o ano em que o país “bombou”, com o PIB explodindo em saudosos 7,5%. Em 2013,
ano em que a seca fez o governo acionar as térmicas permanentemente, o consumo
residencial cresceu quase duas vezes mais que a média do país.
E aqui vai a segunda e paradoxal
má notícia: ao fazermos isso, estamos aliviando nosso problema imediato, mas
ajudando a agravar ainda mais o aquecimento da Terra. Isso porque
condicionadores de ar, como sabe qualquer um que tenha pago sua conta de luz em
janeiro, consomem um monte de energia. E a energia, no Brasil, está cada vez
mais rica em gás carbônico, principal culpado pelo nosso novo (e
desconfortável) clima.
Somente entre 2012 e 2013, as
emissões de gases de efeito estufa por uso de energia no Brasil cresceram 7,3%.
Parte disso se deve ao aumento do consumo de gasolina e diesel, mas parte se
deve à “fossilização” progressiva da nossa matriz. Os dados são do SEEG, o
sistema de estimativa de emissões de gases-estufa desenvolvido pelo
Observatório do Clima.
Com pouca água nos reservatórios
das hidrelétricas devido a três estiagens consecutivas e a seu assoreamento
pela destruição de matas ciliares nos
rios que os abastecem, o governo apostou nas termelétricas a carvão, óleo e gás
para evitar o racionamento – que só não veio ainda porque a indústria, maior
consumidora de eletricidade, foi à lona no governo Dilma. No total, as emissões
por queima de combustíveis no setor elétrico cresceram cerca de 20 milhões de
toneladas de CO2 em um ano, segundo dados do Instituto Energia e Meio Ambiente.
Ainda é pouco diante do total de 1,6 bilhão de toneladas que o país emite, mas
a trajetória da matriz brasileira não é nada inspiradora: entre 2011 e 2013, a
geração fóssil mais que dobrou, saltando de 8,4% para 18,3% do total.
Previsões
para o futuro
As previsões para os próximos 25
anos são áridas, em vários sentidos: com cada vez mais calor e estiagem, haverá
cada vez menos água nos reservatórios. Isso tornará a energia de Belo Monte e
outras usinas cara demais. Com a queda dos preços do petróleo e um excesso de
carvão mineral barato circulando no mundo – já que China, EUA e Europa estão
progressivamente regulando suas emissões e reduzindo o uso desse combustível –,
o crime das térmicas passará a compensar no Brasil, do ponto de vista
estritamente monetário.
É aqui que entra aquele split de
10 mil BTU com controle remoto que você acaba de financiar em lojas do ramo: se
cada uma das 65,9 milhões de residências que consomem energia no país tivesse
um aparelho desses funcionando seis meses ao ano só em dias de semana, teríamos
de ter duas usinas de Belo Monte operando no máximo (11.400 megawatts) só para
alimentá-los. Ninguém tem dados atualizados sobre o peso do ar condicionado na
nossa trajetória de emissões, mas um estudo de 2008 da Coppe-UFRJ dá uma pista:
em 2030 nosso novo objeto do desejo representaria, sozinho, 9% a mais no
consumo de energia no país em relação a 2007. Boa parte disso iria direto para
a atmosfera, num círculo vicioso de mais calor, mais ar-condicionado, que
produz mais calor e exige mais ar-condicionado.
Isso se nós e nossos governantes
ficarmos parados de braços cruzados esperando a próxima canícula, ou quem sabe
a próxima promoção de alguma loja.
Sob o risco de parecermos
repetitivos, permitam-nos dizer que há no mercado tecnologias disponíveis para
mitigar o problema. O Brasil tem vento de sobra, e a energia eólica só cresce
no país. Tem sol (e como!), e os painéis solares estão cada vez mais baratos.
Desde 2013, as distribuidoras já são obrigadas a permitir que sistemas
fotovoltaicos residenciais troquem energia com a rede. O investimento inicial é
alto, mas se paga com a redução na conta de luz.
Os consumidores têm um papel
fundamental: reduzir seu uso de energia e pressionar suas distribuidoras para
fazê-las cumprir a regra. Mas é do governo a principal tarefa: mudar seu
planejamento energético, embutindo nele o fator mudança do clima e incentivando
em escala a geração distribuída e a eficiência. É hora de subsidiar a energia
solar com os mesmos juros de pai para filho do BNDES que beneficiam nossas
ausentes hidrelétricas. Quem sabe o calor e o iminente apagão de 2015 não
ajudam a refrescar as ideias e iluminar as mentes dos nossos tomadores de
decisão.
Fonte: Carlos Rittl e Ricardo Baitelo
Comentários
Postar um comentário