Desabafo Ecológico
O esforço que nós, mediadores
ecológicos, temos de fazer no mundo em que vivemos atualmente é
exponencialmente infinito, enquanto técnicos especializados numa parcela da
realidade, conjugado com visões globais de conjunto que não nos impeçam ver a
floresta. As empresas não vão mudar de proposições por mais sermões, tratados e
cúpulas que realizemos. As leis do mercado são muito transparentes, claras e
taxativas neste sentido, e não entendem de teorias nem de milagres e
altruísmos; para elas, o branco é simplesmente branco e o negro, negro,
haver-dever, custo-benefício, perda-rentabilidade é a argumentação bipolar com
que estruturam o mundo. E como diz Dalton, “enquanto a destruição capitalista
continue produzindo ganhos para os donos do mundo e seja mais importante que a
conservação ambiental, a única possibilidade que a ecologia tem de ser
importante é a de continuar sendo um negócio”.
E não podemos deixar de
reconhecer que a perspectiva atual que o capitalismo impõe frente à lógica dos
mercados mundiais supõe, para os postulados do desenvolvimento sustentável, uma
postura no mínimo subversiva ou contraditória para suas aspirações e
interesses, ao seguir prescindindo dessas externalidades que nunca custaram
dinheiro como a água ou o ar. Com o avanço das sociedades modernas fomos
assistindo progressivamente à queda de alguns mitos importantes para as
esperanças e ilusões da sociedade do bem-estar:
1. Pensava-se que com maior
crescimento, haveria menor desemprego. Aconteceu justamente o contrário.
2. Pensava-se que com maior
progresso, haveria mais igualdade e divisão de bens.
3. Pensava-se que com maior
avanço científico, haveria mais racionalidade cívica e maior capacidade de
convivência pacífica entre os povos.
4. Pensava-se que com mais
tecnologia, haveria menos contaminação.
5. Pensava-se que com mais
bem-estar, haveria menos problemas de convivência, exclusão e equidade.
6. Pensava-se que a igualdade
devia nos levar a superar todos os mitos sobre as razões de gênero, de nível
social e cultural, de ordem étnica...
As misérias do historicismo põem
em dúvida hoje as muitas travas, precariedades, inconsistências, limitações,
debilidades e deficiências do ser humano no panorama da globalização. O meio
ambiente amiúde ilustra as histórias mais macabras e sub-realistas que qualquer
literato engenhoso de nosso tempo seria capaz de imaginar no plano da ficção;
bastam alguns exemplos para mostrar o cúmulo da estupidez em matéria ambiental:
“derrame de ácido sulfúrico no sul da França”, “o preço do iogurte”, “madeira
ou corujas”, “eco-taxas e privilégios”, “pista de bicicleta ou estacionamento”,
“o preço do ruído”, “macela da serra”, etc.; e um sem fim de anedotas locais
que, em pequena escala, demonstram até onde nós, os humanos, somos capazes de chegar.
E em outra escala mais global, a
realidade supera mil vezes os cânones da ficção, dos malefícios daquele
imperador que acreditou na palavra de seu próprio alfaiate, que o melhor traje
do mundo era aquele que todo o mundo aclamava, sem que ele mesmo desse crédito
à sua consciência de que estava nu; tal como o fez Calvino na história do
cavaleiro inexistente, ou Cervantes, quando Quixote se atirava contra os
moinhos jurando e perjurando a seus companheiros que eram gigantes que o
injuriavam vilmente pondo em dúvida sua honra de cavaleiro da triste figura.
Talvez haja chegado o momento de criar aquele dicionário apócrifo do meio
ambiente com que tanto sonharam os humoristas, como prova incontestável de que
começam a nos considerar um grupo profissional no qual progressivamente vão
crescendo os anões e também as piadas mórbidas. O caso da defesa preventiva,
que não dá nenhuma prevenção ambiental, talvez seja a gota que transborda o
copo, como se fosse uma paranoia, similar ou superior à daquele imperador que
passeava nu por seu reino, convencido pela falsa admiração de seus cortesãos
frente a seu deslumbrante traje novo. Esta é a cegueira que Gorz nos pregou no
começo dos anos de 1980 – e somente em situações-limite abrimos os olhos
durante uns dias para voltar a fechá-los instintivamente, ao ver que não
acontece mais do que já está acontecendo ao nosso redor. Tal como pregou
Saramago em sua canção de Davos, quando aquele mineiro subiu ao campanário para
acalmar seus vizinhos, tocando o dobre de finados na torre da igreja, para lhes
informar que não havia nenhum cadáver, mas que a justiça estava morta.
As lições aprendidas, desde a
revolução industrial, no imaginário coletivo mundial não foram demasiadas.
Embora as realizações singulares mais evidentes e as cotas de bem-estar
observável na passagem de uma geração para outra sejam mais que evidentes e
apreciáveis, em nossas singulares vidas também aumentaram, infelizmente, nossas
frustrações, nossos desencantos e nossas desilusões para com a espécie humana.
E não gostaria de concluir este
resumo sem mencionar explicitamente o discurso do desenvolvimento sustentável,
um discurso que contribuiu para diluir com bastante sucesso todo o trabalho de
sensibilização, conscientização e denúncia que os movimentos sociais
pró-ambientais silenciosamente vinham construindo. Certo que nos deu a
oportunidade para debater e disputar sobre um espaço comum, mas é menos certo
que nos levou a disfarçar com o mesmo traje interesses e visões historicamente
confrontadas: “a capacidade de convergência demonstrou ser o ponto forte do
desenvolvimento sustentável e a ambiguidade semântica um ponto fraco” (Sachs,
2001, p. 10). A expressão desenvolvimento sustentável se converteu num tipo de
cola multiuso que pôs em contato ambientalistas e imobiliárias, empresários e
conservacionistas, políticos e gestores, sem que pelo simples uso comum do
termo tenha-se resolvido nada; muito pelo contrário, com a confusão gerada,
quem mais saiu ganhando foram os defensores do neoliberalismo, pois o termo
desenvolvimento pode significar qualquer coisa, dependendo de como se olhe e
com que fins se empregue. Frente a uma dócil aparência de neutralidade
semântica, podemos ver como seu uso polissêmico permite acepções diametralmente
opostas que vão desde quem o emprega como o crescimento econômico per capita em
termos de PIB (Produto Interno Bruto), sem se preocupar com que o crescimento econômico
exploda o capital social e natural para produzir mais capital monetário, até os
que identificam desenvolvimento como sinônimo de mais direitos e recursos para
os pobres e recomendam priorizar a busca do bem comum com base no patrimônio
social e natural (Sachs, 2002, p. 14).
Ao ligar a ideia de
desenvolvimento à de sustentabilidade se desenham os limites e as restrições da
exploração dos recursos e se abrem os mercados ao livre uso em prol do
crescimento econômico. Isto foi uma das grandes críticas formuladas aos textos
nascidos no Rio, nos quais as pressões dos setores econômicos forçaram que a ideia
de crescimento econômico fosse assumida como um imperativo natural, que fosse
considerada de saída como uma solução e não como parte do problema, legitimando
deste modo que todo esforço ligado ao desenvolvimento necessite dos
instrumentos do crescimento.
Até o momento, a maioria dos
modelos e das teorias econômicos que foram aparecendo não considerou o meio
físico e seus recursos como elementos integrantes da atividade produtiva, salvo
para entendê-los como insumos ou variáveis de entrada exógenas para os
diferentes modelos propostos denominados na linguagem econômica mais pura sob o
eufemismo de “externalidades”, porquanto na produção não se estima seu custo
como bens valiosos. Um primeiro passo consiste em integrar a estimativa de
custos muito locais ligados a conseqüências ambientais tangíveis da produção.
Embora o problema se apresente quando esses custos não estão ligados a consequências
ambientais singulares (efeito estufa, perda de biodiversidade...). Se no
primeiro caso a pressão que os afetados e as normas locais exercem, com um
pouco de sorte, obrigam a que se realizem estimativas que transformam os danos
ambientais diretamente em custos para produtores e consumidores, no segundo
caso tanto a estimativa de custos como a identidade das vítimas escapam à
possibilidade da justiça e dão lugar a perguntas como: quando a evolução do
efeito estufa houver desencadeado a inundação de Bangladesh, como vamos nos
encarregar de milhões de refugiados? Talvez de forma proporcional à
contribuição de cada país, no passado, para a poluição atmosférica?
Embora os gregos já tenham nos
advertido que a Economia e a Ecologia deviam ter raízes comuns e que por
imperativo etimológico deveriam se ocupar de alguma causa comum, todos sabemos
que na realidade há mais desencontros e diferenças do que semelhanças entre
esses dois mundos tão distanciados entre si. Se a ecologia tem seu próprio
mundo, o da economia é outro bem diferente. Para a Economia preocupa mais a
contabilidade, os balanços das finanças em termos de custos e benefícios, o
dinheiro, a acumulação de fortuna, taxas, ações e bônus, e as diferentes formas
de multiplicar e reproduzir esses capitais e ampliá-los no menor prazo de tempo
e com o mais baixo custo financeiro possível.
Mas assim como a economia não
seria nada sem a ecologia, esta última poderia sim prescindir dos favores da
primeira, pelo menos ao abordar questões e sistemas em que não intervenha o ser
humano, mas realmente são tão escassos os cantos do planeta em que a ação
humana não exerça alguma influência direta ou indireta que temos de reconhecer
que os dois âmbitos do saber estão condenados a se completarem, a se entenderem
e unirem esforços ou pelo menos a conviverem ou coabitarem para explicar as
diferentes facetas da realidade natural ou artificial. Esta complementação há
de nos custar, ao setor ambiental, um esforço importante de reconversão até chegar
a demonstrar que somos úteis na sociedade e que temos algo a oferecer como
profissionais.
Fonte: Michèle Sato
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