A Ética e os Animais
A exclusão tem sido, ao longo dos
tempos, o mecanismo mais eficaz para garantir a identidade e coesão de um
grupo, quer se trate de tribos, nações, raças, sexos ou espécies, ao que a
ética responde com o alargamento progressivo da esfera de consideração moral,
até atingir a universalidade, na esfera do humano, com a Declaração Universal
dos Direitos do Homem. No entanto, a racionalidade (à qual é hábito associar a
linguagem, a meu ver, de forma errônea), mantém-se, ainda, como diferença
específica do Homo sapiens sapiens, impedindo a ultrapassagem da última
barreira ética, a saber, o preconceito especista. No entanto, o que se me
afigura digno de nota, é não ser sequer a dita racionalidade o verdadeiro
critério distintivo do animal humano em face dos restantes animais, mas sim
algo muito mais aleatório que justifica bem melhor a qualificação do
especiecismo como preconceito e que é denunciado, já no Século 17, por John
Locke, em “O Ensaio sobre o Entendimento Humano”.
Vejamos o que nos diz o filósofo
inglês: “[…] Penso poder estar seguro que quem quer que veja uma criatura com a
sua própria forma e feitio, embora esta nunca tenha tido durante toda a sua
vida mais razão do que um gato ou um papagaio, ainda lhe chamaria um Homem; ou
quem quer que ouça um gato ou um papagaio falar, raciocinar e filosofar
chamar-lhes-ia ou pensaria não serem mais do que um gato ou um papagaio e
diriam que aquele era um Homem estúpido e irracional e este um papagaio muito
inteligente e racional”.
A “forma e o feitio”, não a capacidade
de raciocinar, são, pois, os verdadeiros critérios determinantes do que é
humano, uma vez que um gato ou um papagaio não passam a ser homens pelo seu
hipotético elevado grau de racionalidade, nem tampouco um ser humano o deixa de
ser por apresentar graves deficiências mentais. Mas, suponhamos que Locke está
errado e que a razão é, realmente, o traço distintivo do humano.
Não nos obrigará este critério a
excluir da humanidade todos aqueles que, no dizer do filósofo, “nunca tenham
tido durante toda a sua vida mais razão do que um gato ou um papagaio”? Não nos
repugna tal discriminação como imoral, da mesma forma que nos repugnam todas as
formas de racismo, sexismo e outras? Ora, é justamente a este tipo de exclusão
que estão sujeitos milhões de seres cujo único crime é não pertencer à espécie
“certa” e não apresentar um QI semelhante ao humano.
Uma ética que se queira
verdadeiramente universal não pode fundar-se em fatos – ainda que não os deva
ignorar – mas erigir em valor, ou seja, em objeto de consideração ética, o bem
próprio de cada ser, segundo a distinção de Moore, reafirmada por Peter Singer
em “A Darwinian Left”. Assim sendo, torna-se tão absurdo afirmar que alguém é
ou não merecedor de consideração ética consoante à cor da sua pele, como fazer
depender aquela da espécie a que pertence, pois se trata, em ambos os casos, de
fatos biológicos, não de valores éticos. Perguntar se á, então, qual o critério que devemos
utilizar para a determinação do valor ético de qualquer entidade, uma vez
desmontado o preconceito especiecista responsável por todas as éticas
antropocêntricas. Hesito na escolha de um único critério capaz de dar resposta
a todos os casos; menciono dois que me parecem eticamente complementares: a
senciência e a integridade/dignidade.
Quando Singer defende, numa linha
utilitarista, que “o limite da senciência [...] é a única fronteira defensável
para a preocupação pelos interesses dos outros”, está afirmando que a
capacidade de sentir – prazer e dor – constitui um pré-requisito para a própria
posse de interesses cuja satisfação cabe à ética garantir; ou seja, ser
passível de consideração ética implica ter interesses e ter interesses implica
ser capaz de sentir, o que, por seu turno, não significa apenas viver, mas
lutar para preservar a vida, não apenas satisfazer as suas necessidades
básicas, mas perseguir, por iniciativa própria, essa satisfação e preocupar-se
em obtê-la, numa palavra, pressupõe qualquer referência a si como entidade
autônoma: alguém e não somente alguma coisa. Ora, em todos os animais
detentores de consciência/de si, memória, capacidade de projetar-se no futuro
(primatas e mamíferos), existe alguém que sofre e que deseja deixar de sofrer,
ou alguém que se sente bem e deseja prolongar esse bem-estar, evitando o malestar,
o que torna eticamente condenável toda a inflicção de dor ou sofrimento que não
tenha em vista um bem-estar maior para aquele a quem é infligido, sobretudo, se
tivermos em conta o cariz supérfluo da maior parte dos interesses humanos em
nome dos quais tal sofrimento é provocado (ex: exigências da moda, do paladar,
uso de cosméticos, formas de lazer, etc.).
Se o sofrimento põe de forma
inequívoca em causa a integridade/dignidade dos seres sencientes, podemos,
contudo, antever alguns casos em que a diminuição da dor venha acompanhada de
perda daqueles atributos. Suponhamos que um estudo etológico revela que as
galinhas cegas são menos agressivas e não se mutilam entre si com a mesma frequência
do que as galinhas normais. Por sua vez, graças à engenharia genética, seria
possível criar um novo tipo de galinhas cuja incapacidade visual permitiria
poupar-lhes o sofrimento resultante da sua agressividade natural. Numa lógica
puramente utilitarista, tal forma de manipulação genética constituiria um bem e
deveria ser incentivada, ao passo que, do ponto de vista da integridade
psicofísica do animal, representaria, ela mesma, uma forma de mutilação. Assim,
se o sofrimento deve estar na primeira linha de combate, na proteção aos
animais não humanos, é preciso lembrar que há outras formas de atentar contra a
sua integridade, de que o exemplo dado é um caso limite, mas para as quais
todos nós, em maior ou menor grau, com mais ou menos consciência, contribuímos,
quando cedemos à tentação de antropomorfizar os animais com quem convivemos
diariamente.
Ao serem, na expressão de Tom
Regan, “sujeitos de uma vida”, os animais têm direito à sua própria vida e não
àquela que julgamos melhor para eles, segundo os nossos próprios parâmetros, o
que, no entanto, não impede, a meu ver, o benefício mútuo, sobretudo em nível
afetivo, que pode advir do convívio entre humanos e outros animais. É,
precisamente, esta troca e esta dádiva mútua que não são capazes de entender e
de experimentar todos aqueles que põem, como motivação última para o tratamento
digno dos animais, a preservação da integridade moral dos humanos, ou seja,
deveres indiretos para com aqueles.
Não estamos, aqui, perante um
juízo condicional, mas categórico, ou seja, não é se tratar bem os animais que
não me degrado moralmente, mas, ao fazê-lo, estou, não só a respeita los na sua
integridade, como , por acréscimo, a enriquecer a minha experiência pessoal e a
alargar a minha consciência moral, o que me obriga a ter, para com os animais
nãohumanos, deveres diretos. Não há, pois, que pôr em alternativa a proteção às
crianças, aos deficientes ou aos animais, mas considerá-las em simultâneo,
movidos pela mesma coerência com que temos vindo a alargar de modo sucessivo a
esfera da consideração moral a todas as formas de alteridade não padronizadas.
Esta atitude, longe de significar uma qualquer perda da identidade humana,
surge, pelo contrário, como sinal da sua maturidade, pois, “como uma pessoa que
continuamente se olha ao espelho, parecemos possuir uma irritante insegurança acerca
da imagem que fazemos de nós próprios. Os nossos ruidosos acessos de
superioridade sugerem, não que tenhamos uma verdadeira auto confiança, mas que
somos bastante inseguros. [...] Somos os membros mais recentes na família da
vida – os perpétuos recém-nascidos do mundo animal. De um modo fundamental,
precisamos que outras criaturas nos digam quem somos.” (Gary Kowalski, “The
Souls of Animals”).
Resta-me fazer votos para que, um
dia, deixemos de falar em “ética animal” ou reservemos a expressão para a parte
da Etologia reservada ao estudo do comportamento ético dos animais entre si,
para passar a falar tão só em ética. Nesse momento, os objetivos deste artigo
serão integralmente cumpridos.
Fonte: www.eco21.com.br
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