Como era o Brasil há 100 milhões de anos
Há 140 milhões de anos, no início do período Cretáceo, o
Brasil era coberto por um vastíssimo deserto de dunas muito maior que o Saara.
Este deserto desapareceu ao ser engolido por um oceano de lava produzido pelo
maior extravasamento de magma dos últimos 500 milhões de anos. Sete entre as
dez maiores erupções vulcânicas, inclusive as três maiores, que ocorreram no
planeta neste período aconteceram no Sudeste brasileiro. O panorama geológico
que os pesquisadores brasileiros estão compondo de nosso país é estarrecedor.
O mais recente trabalho que procura atar três peças
basilares desse quebra-cabeça colossal, as três bacias geológicas que sustentam
a porção Centro-Sul do território brasileiro, acaba de ser publicado no Journal
of South American Sciences. Um de seus autores é o geólogo Alessandro
Batezelli, do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). O projeto teve o apoio da Fapesp.
O foco do estudo de Batezelli são as bacias sedimentares do
Centro-Sul do Brasil, com destaque para as bacias Bauru, Sanfranciscana e dos
Parecis. Entender o modo como os eventos tectônicos e climáticos interagiram em
cada uma delas no tempo e no espaço ajuda a estabelecer uma sequência
cronológica.
A descoberta daqueles eventos não foi obra de Batezelli e do
geógrafo Francisco Sergio Bernardes Ladeira, o coautor do trabalho. Mas é a sua
pesquisa, assim como a de outros profissionais, que nos permite tecer um esboço
do drama geológico que se desenrolou no Centro-Sul brasileiro entre 135 e 60
milhões de anos atrás.
A ruptura de Gondwana
No período Jurássico, entre 201 e 145 milhões de anos atrás,
a América do Sul e a África encontravam-se unidas. Ficavam bem no meio do
antigo megacontinente Gondwana. As correntes de ar saturadas de umidade do
antigo oceano Pantalássico não tinham força para atingir o distante centro de
Gondwana. Daí a formação de um imenso deserto, o deserto Botucatu. É o mesmo
processo que se vê hoje na Ásia Central, cujo clima desértico se deve à sua
grande distância dos oceanos.
Quase não há fósseis preservados do Jurássico no Brasil.
Explicações, para tanto, seriam o clima inóspito do deserto e também a difícil
preservação de fósseis num ambiente de dunas. No entanto, o deserto Botucatu
não era desabitado. Até agora, foram achadas apenas algumas pegadas
fossilizadas de mamíferos e de répteis.
Há 140 milhões de anos, a América do Sul e a África
começaram a se separar para dar início à abertura do Atlântico Sul. “O fenômeno
que provocou a ruptura de Gondwana foi o surgimento de fraturas profundas na
crosta terrestre”, diz Batezelli. Por essas fraturas começou a extravasar magma
do interior do planeta em quantidades descomunais. À medida que as fendas iam
se alargando, e os continentes se afastando, mais lava extravasava, num
processo contínuo e muito prolongado, que perdurou de 137,4 a 128,7 milhões de
anos atrás.
O epicentro desta megaerupção vulcânica, “ou mais
apropriadamente um megaextravasamento basáltico, conhecido como Província
Vulcânica Paraná-Etendeka,” como observa o geólogo, foi o Sudeste e o Sul do
Brasil, que se encontravam ligados às terras da atual Namíbia, na África.
A Província Vulcânica Paraná-Etendeka foi formada a partir
de diversas fendas, ou megavulcões, os maiores de que se têm notícia. Não eram
vulcões explosivos, como os que estamos acostumados a ver. “Não havia erupções
explosivas. As fendas jorravam continuamente”, diz Batezelli. “Daqui até a
África havia fendas através das quais a lava extravasou sobre uma área gigantesca
e por um período muito prolongado.” Através daquelas fendas transbordaram 2,3
milhões de km3 de lava, que cobriram totalmente 1,5 milhão de km2 – equivalente
a cobrir o Estado do Amazonas, o maior do país, com uma camada de lava de 1,5
km de altura.
A origem do aquífero
Guarani
Toda essa lava enterrou as antigas dunas do deserto Botucatu
e foi-se acumulando em camadas sucessivas até erigir a Serra Geral, que cobre
os Estados do Paraná, Santa Catarina e o norte do Rio Grande do Sul – além do
leste paraguaio e o norte da Argentina. Sua areia foi cozinhada a uma
temperatura de 1.200 graus centígrados e prensada pelo peso do magma. A areia
acabou virando arenito, uma rocha bastante porosa que tem a propriedade de
armazenar a água da chuva que é absorvida pelo solo.
No caso das dunas do deserto Botucatu, elas deram origem ao
aquífero Guarani, um dos maiores reservatórios subterrâneos de água doce do
planeta, enterrado sob o chão do Centro-Sudoeste do Brasil. O aquífero Guarani
comporta 37 mil km3 de água, equivalente a 1,6 vez o volume do maior lago do
planeta, o Baikal, na Sibéria.
“Nas regiões onde as dunas entraram em contato direto com a
lava, houve um aumento de temperatura tão grande que os sedimentos foram
literalmente cozidos, formando um arenito mais duro e impermeável, que é usado
hoje nas calçadas de mosaico português”, diz Batezelli. Já a lava resfriada
formou basalto, e este, desgastado por cem milhões de anos de erosão, deu
origem à terra roxa, o solo fértil que alavancou no século XIX as lavouras de café
em São Paulo e no Paraná.
Um novo deserto
Há 128,7 milhões de anos, quando os extravasamentos de magma
findaram, aquele gigantesco acúmulo de rocha vulcânica fez com que parte do
Sudeste brasileiro sofresse um abatimento sob seu próprio peso, o que criou na
superfície uma nova bacia sedimentar, a Bacia Bauru. E sobre esta bacia
formou-se um novo deserto de dunas, porém menor que o anterior.
O Atlântico Sul mal começara a abrir. Ainda nem era um braço
de mar, no máximo uma depressão alagada para onde convergiam os rios, os
sedimentos e a erosão de dois continentes. Ou seja, as águas de Pantalassa – o
oceano que rodeava a Pangeia – ainda estavam longínquas, assim como sua brisa
úmida. Para acabar com as condições de secura do Centro-Sul do Brasil, seria preciso
aguardar outros 60 milhões de anos, quando o Atlântico Sul, embora com menos da
metade da abertura atual, pôde amenizar o clima.
De qualquer forma, aquela depressão que lentamente se
alargava um par de centímetros por ano já ia se fazendo sentir no clima. O novo
deserto de dunas, agora denominado Grupo Caiuá, não era tão grande como o
antigo deserto Botucatu, afirma Batezelli. Era árido, mas pontilhado aqui e ali
por oásis infestados de várias espécies de crocodilos terrestres, parentes
extintos dos crocodilianos atuais.
Aqueles crocodilos viviam em terra firme, tinham patas
longas e andavam como lobos. Os paleontólogos já descreveram mais de uma dúzia
de espécies. A mais famosa é o famigerado baurusuchus, uma fera predadora. Mas
havia também formas bizarras, com chifres ou com uma carapaça semelhante à dos
tatus, como a do armadillosuchus, e até um crocodilo herbívoro, o esfagessauro.
As dunas do Caiuá existiram entre 125 e 100 milhões de anos
atrás, quando cederam lugar a uma nova paisagem formada por rios e lagos. “O
clima se tornou muito mais ameno, similar ao semiárido da Caatinga nordestina”,
diz Batezelli. Essa nova depressão recebeu sedimentos que hoje pertencem ao
Grupo Bauru, que existiu entre 80 e 60 milhões de anos atrás.
Aí sim os titanossauros proliferaram. A maioria das espécies
brasileiras é dessa fase. Seus fósseis homenageiam o nome das cidades mineiras
e paulistas próximas das quais foram encontrados, como uberabatitan e
baurutitan.
A Bacia Sanfranciscana
Concomitante a estes 60 milhões de anos de transformações na
Bacia Bauru, “mais para o norte, na Bacia Sanfranciscana, ocorreram fenômenos
muito parecidos, embora sem serem os mesmo”, salienta Batezelli. A Bacia
Sanfranciscana engloba o oeste de Minas Gerais, Goiás, Tocantins e o oeste da
Bahia, estendendo-se até o sul do Piauí.
Durante o Cretáceo inferior, na Bacia Sanfranciscana se
desenvolveram campos de dunas eólicas. Dezenas de milhões de anos depois, já no
Cretáceo superior, também aconteceu vulcanismo. “Bem no limite entre as bacias
Bauru e Sanfranciscana se formaram diversos vulcões”, revela Batezelli pautado
em sua pesquisa. “Eles apresentaram um extravasamento bem menor do que o
vulcanismo que deu origem à Serra Geral, porém foram responsáveis por formar
uma região mais elevada entre as Bacias Bauru e Sanfranciscana. Foi como se a
crosta inchasse por causa do calor das intrusões magmáticas.”
Seu relevo é perceptível até hoje, nas crateras no interior
das quais estão as cidades de Araxá, Tapira e Poços de Caldas. “As grandes jazidas
de nióbio assim como outras riquezas minerais do sudeste de Minas Gerais estão
relacionadas a este vulcanismo.”
O vulcanismo na Bacia Sanfranciscana ocorreu há menos de 100
milhões de anos atrás. A maior parte da lava que extravasou desses vulcões avançou
sobre as dunas.
A evolução da Bacia dos Parecis é semelhante ao ocorrido nas
bacias Bauru e Sanfranciscana. Ainda no período Jurássico superior, ocorreu um
vulcanismo modesto nos Parecis. Há 145 milhões de anos atrás, já no Cretáceo
superior, formaram-se rios e lagos na região compreendida entre o norte do Mato
Grosso e o oeste de Rondônia. Com o passar do tempo o clima foi se tornando
mais árido e o cenário paisagístico se transformou num campo de dunas.
Em resumo, e comparando os cenários das três bacias
sedimentares, conclui-se que do Cretáceo inferior ao Cretáceo superior, um
período de mais de 60 milhões de anos, houve um deslocamento dos desertos de
dunas no território brasileiro das direções sudeste para noroeste.
Das dunas eólicas aos rios
e lagos
Durante o Cretáceo inferior, a região Sudeste era dominada
por uma paisagem desértica formada por dunas eólicas. Já no Cretáceo superior,
a maior parte da região Sudeste passou a ter uma paisagem constituída por rios
e lagos, enquanto que desertos de dunas surgiram no norte de Minas, em Goiás,
Tocantins, Matogrosso e Rondônia. “Isso demonstra que, com o passar do tempo,
houve uma diminuição nas condições de umidade de sul/sudeste para o
centro-oeste/norte do Brasil”, revela Batezelli.
Todo o drama geológico descrito acima se desenrolou em
paralelo ao alargamento do Atlântico Sul. Suas brisas que cresciam em volume e
intensidade semeavam cada vez mais umidade na porção sudeste do continente.
Esse era o cenário dominante quando da extinção em massa do
fim do Cretáceo, há 65 milhões, que deu fim aos dinossauros. Esse legado
geológico, geográfico e climático formou o novo meio ambiente no qual os
mamíferos da era Cenozoica puderam se adaptar. Mas esta é uma outra história.
Fonte: Agência FAPESP
A gente não tem idéia do que está por vir no planeta, pois está sempre em constante mudança. Existe beleza tb no caos.
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