Tudo menos desperdício
As bolsas de valores movimentam
diariamente fortunas em ações cotadas pelo desempenho e pela lucratividade do
que as companhias produzem. Sem os gritos e o estresse característicos desses
mercados, estão surgindo “bolsas de resíduos” para negociar recursos mais
palpáveis e menos glamourosos: os desperdícios das indústrias. Elas funcionam
como um MercadoLivre de sucata, multiplicando anúncios de venda e compra
online.
Novas plataformas na internet
estão conectando empresas de todos os tamanhos e setores que oferecem seus
desperdícios, as que buscam insumos para seu negócio, transportadoras para
levar materiais de uma ponta a outra, recicladoras e cooperativas de catadores
que comprem resíduos para desmanche e revenda, além de auditores ambientais
para certificar empresas e processos.
O objetivo é transformar o que
está sendo dispensado por uns em matéria-prima para outros e afastar do lixo
materiais que podem – e devem – ser reaproveitados. Há 312 mil indústrias no
Brasil, segundo dados de 2011 do IBGE. Se as bolsas de resíduos pegarem, o
ciclo de vida dos recursos extraídos da natureza pode dar mais voltas antes de
eles terminarem aterrados.
Depois de 20 anos encalhada no
Congresso, a nova Lei Nacional de Resíduos Sólidos foi aprovada em 2010. Em
2014, os 2.906 lixões – depósitos de rejeitos a céu aberto –, distribuídos por
2.810 municípios, não poderão mais existir. Embora as chances de isso acontecer
dentro do prazo sejam mínimas, já que seriam necessários US$ 70 bilhões para
transformá-los em aterros sanitários, as regras estão mudando e o poder
público, as empresas e os cidadãos terão de se adaptar. A partir de 2016, as
medidas ficarão mais rígidas: passa a ser crime ambiental enviar materiais
recicláveis para aterros sanitários. Com a nova legislação, o mercado dos
desperdícios está recebendo o empurrãozinho de que precisava.
Lei da
oferta e da procura
Uma das iniciativas mais recentes
no mercado é a startup B2Blue, que se define como uma “plataforma online de
valorização e comercialização de resíduos sólidos gerados por indústrias,
empresas e comércio”. No seu ano de estreia, completado em junho, a empresa
contabilizou 5,4 milhões de quilos de resíduos negociados a pouco mais de R$ 6
milhões. Os itens são os mais variados: arame, ripas de madeira, PVC, pneus,
sucata automotiva contaminada, borracha, retalho de tecido, vidro, gordura
vegetal e bagaço de cana.
As possibilidades são enormes. A
casca de ovo – desperdício usual na indústria de alimentos – é um recurso
cobiçado por fabricantes de cosméticos. Os retalhos de tecido podem ser
empregados na fabricação de baldes, cabides plásticos e para forração de bancos
na indústria automobilística. “Poucas empresas estudam essas possibilidades de
reaproveitamento. Nós entramos com o know-how, encontrando soluções para os
‘elefantes brancos’ com os quais as empresas precisam lidar”, destaca Mayura
Okura, CEO e fundadora da B2Blue.
A startup cobra taxas de 3% a 15%
pela assessoria e intermediação no processo de compra e venda. Mais de seis mil
empresas são usuárias do portal. Embora tenha atuação nacional, a companhia
reúne mais empresas da região de São Paulo, onde está localizada. A logística e
o custo do transporte dos resíduos são algumas das partes mais onerosas e
complexas do processo. Os melhores negócios acabam sendo, na maioria das vezes,
impulsionados pela proximidade física entre as empresas.
Seguindo essa lógica, as Bolsas
de Resíduos das Federações das Indústrias de cada Estado brasileiro vinham
trabalhando desde 2003 de forma independente. Só em 2009 a Confederação
Nacional das Indústrias (CNI) criou a Bolsa Integrada de Resíduos para todos se
interligarem, abrindo o leque de oportunidades. Oito Estados aderiram a essa
ideia. Minas Gerais, Paraná e Bahia são os mais ativos no bolsão. “Por exemplo,
em Minas, estamos defasados no setor de reciclagem de vidro. Por meio da rede
integrada, as empresas mineiras podem encontrar compradores em outros lugares”,
aponta Guilherme Zanforlin, analista ambiental da Federação das Indústrias do
Estado de Minas Gerais (Fiemg).
A Rede Resíduo, por sua vez,
aposta numa abordagem diferenciada. A empresa assina contrato com uma geradora
de desperdícios em alta escala, para a qual disponibiliza seu sistema de bolsa
próprio. Ela paga uma mensalidade fixa à Rede, independentemente do volume
comercializado, para se manter conectada com potenciais compradores dos seus
rejeitos. A geradora publica seus anúncios em um site fechado aos parceiros. O
sistema avisa automaticamente a todos, e os interessados no material anunciado fazem
suas ofertas. Os negócios podem ser fechados online mesmo, por meio da
ferramenta.
“O sistema de comercialização
online está pronto para ser usado por qualquer cliente. O que demora é a
mudança cultural nas empresas. Leva tempo para pensar o resíduo como gerador de
renda”, comenta Isac Wajc, fundador e sócio da Rede Resíduo. Na hidrelétrica de
Jirau (RO), da construtora Camargo Correa – uma das quatro grandes clientes da
plataforma –, os trabalhadores incorporaram a nova mentalidade e quase dobraram
os rendimentos com resíduos dos canteiros de obras. A receita com a sucata
metálica passou de R$ 900 mil para R$ 1,6 milhão em questão de um ano. Ações
como essa podem reverter a fama da construção civil de maior gerador de lixo da
economia.
Para Francisco Luiz Biazini
Filho, também fundador e sócio da Rede Resíduo, o interesse em prolongar a vida
dos recursos naturais é muito maior agora, não só no setor de construção. “Nos
anos 1990, era um modismo; hoje, existe conscientização. Muitas empresas já têm
uma divisão que cuida de meio ambiente e sabem da obrigatoriedade de se
adequar”, diz. Além de comercializar a ferramenta tecnológica, a Rede é
responsável por sugerir parceiros e homologar aqueles que cumprirem requisitos
como licença ambiental, certificações ISO ou internacional, conforme o gosto do
freguês.
Comprovar a idoneidade dos
compradores é o papel de todas as operadoras de bolsas de resíduos,
principalmente quando os desperdícios não seguem diretamente para outra
indústria. Nesses casos, que envolvem transportadoras, recicladoras e
cooperativas, a operadora da bolsa precisa se assegurar de que elas possuem
licenças e certificações para desempenhar as atividades prometidas. Isso
porque, com a nova lei, passa a valer a responsabilidade compartilhada de toda
a cadeia.
Do outro
lado do balcão
A promessa de transformar em
lucro o que era lixo é tentadora, mas nem sempre se torna realidade. Bons
negócios dependem de alta escala e demanda. De qualquer forma, as bolsas se
apresentam como solução para, no mínimo, reduzir custos com a destinação
correta dos resíduos ou, pelo menos, evitar multas ambientais. “Os ganhos com
as vendas nem sempre são suficientes para cobrir os gastos com a destinação
ambientalmente correta”, admite Flávio Nicolau, da gestora de resíduos
eletrônicos EcoBrasil, de Varginha (MG).
Os plásticos utilizados nos
computadores, por exemplo, só têm bom valor no mercado quando são puros – as
misturas e as pinturas antichamas desvalorizam o ‘produto’. As placas
eletrônicas são as mais bem cotadas, por possuírem metais nobres. “Quanto maior
o nível de precisão do desmanche dos equipamentos eletrônicos, mais caro o
processo. Por isso, aterrar costuma sair mais barato do que qualquer outra
opção”, explica Nicolau.
A política da EcoBrasil é não
deixar que os envios a aterros passem dos 10% do volume coletado com o cliente.
Mas é o cliente que decide a destinação, conforme o preço que quer pagar pelo
serviço, já descontando o quanto ganhará com a venda dos resíduos. Entre os
mecanismos mais baratos usados para evitar os aterros no caso de materiais de
pouco valor ou rejeitados no mercado estão: a incineração, que gera energia
para a rede elétrica; o coprocessamento, que produz a mistura do cimento; e as
usinas de fabricação de asfalto, que aceitam todo tipo de plástico moído.
Na indústria de reciclagem do
óleo lubrificante para automóveis, as empresas que fornecem o óleo usado – como
concessionárias e oficinas – sempre venderam o material acumulado. Em
contrapartida, elas precisam dar destinação correta a itens contaminados de
óleo. Aí é a vez de os coletores cobrarem por serviços de gestão de resíduos
sólidos. Os envases plásticos seguem para a reciclagem e o metal dos filtros de
carro é redirecionado para a indústria. Já os resíduos (areia, pano, etc.) são
vendidos para a destruição térmica ou o coprocessamento.
Nem todos oferecem esses
serviços, mas os que apostam no comércio de reciclados, como a Lubrificantes
Fenix, de Paulínia (SP), levam vantagem. “Tentamos fidelizar o cliente para não
ter custo para ninguém. Esse é nosso diferencial de negócio”, explica Rodrigo
Domene, gestor industrial da Fenix.
O rerrefino do óleo lubrificante
para automóveis é inesgotável, porque o material nunca perde suas
características. Mas a indústria somente passou a investir de fato no seu
reaproveitamento após a resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente
(Conama), em 1993, que tornou obrigatório o recolhimento desse tipo de óleo.
Atualmente, de cerca de um bilhão de litros de lubrificante gerados anualmente
no Brasil, 36% são reaproveitados, e a intenção é aumentar esse índice para 42%
até o fim deste ano. O óleo usado é altamente poluidor.
De acordo com Albino Rodrigues
Alvarez, coordenador de pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),
incentivos do governo – como desoneração dos produtos fabricados com material
reciclado e linhas de crédito para recicladoras e cooperativas – teriam melhor
efeito do que multas ambientais para estimular o mercado de resíduos. Já
existem projetos de lei nesse sentido. O PL4611/2012, por exemplo, sugere a
redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para artigos
sustentáveis.
No fim das contas, todos ganham
evitando que os recursos se tornem lixo. A natureza é preservada, os insumos
são reutilizados e menos energia é consumida. Colocando tudo na ponta do lápis,
o Ipea estima em R$ 8 bilhões, por ano, os benefícios de reciclar 15 mil
toneladas apenas em aço, alumínio, celulose, plástico e vidro mandados para
aterros e lixões. É muita grana para se jogar fora.
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