Um mundo é o bastante
O mundo é
o bastante? A conservação dos recursos naturais é crucial desde agora
Se a emissão atual de gás
carbônico na atmosfera não for refreada antes de 2016, é bastante provável que
a temperatura média do planeta suba mais do que 2ºC. Caso aumente entre 1,4º C
e 5,8ºC, confirmando o cenário projetado pelo Painel Intergovernamental sobre
Mudanças Climáticas (IPCC) para 2100, o próximo século viverá encrenca grossa.
Fazer previsões é sempre muito
arriscado, mas os cientistas só podem usar os dados de que dispõem. Na verdade,
a cada ano os estudos sobre a crise ecológica se acumulam e os cenários se
agravam. Se o IPCC estiver certo, há chances de “mudanças radicais,
prejudiciais, abruptas e potencialmente irreversíveis”, que deveriam ser
evitadas. Com mais calor, o nível do mar deverá subir entre 8 e 88 centímetros,
acarretando maior incidência de inundações, secas e epidemias. A degradação
ambiental vai prejudicar a capacidade do planeta fornecer peixes e água doce,
reciclar nutrientes do solo e controlar o próprio clima. O número de espécies
da flora necessárias para assegurar o equilíbrio cairá, em prejuízo da
qualidade do ar. Parte substancial da fauna desaparecerá.
A Terra está entrando numa nova
era geológica, afirma um grupo de estratígrafos, deixando o atual período
Holoceno e inaugurando o Antropoceno, a época em que a ação humana constitui um
fator de mudanças geofísicas, “a idade recente do homem”, segundo o químico
holandês Paul Crutzen. Com efeito, se a população mundial chegar a nove bilhões
de pessoas em 2050, e estabilizar, como prevê a ONU, aumentará a pressão por
alimentos, água, madeira, fibras e combustível – e a busca do padrão de consumo
do Primeiro Mundo. Diante dos impactos previsíveis, a conservação dos recursos
naturais torna-se crucial, desde agora.
Quanto mais próspera a sociedade,
mais pobre o planeta? A equação perversa é lógica antes de futurologia: com
nove bilhões os recursos e os serviços ecossistêmicos estarão comprometidos,
sim, a menos que ocorram mudanças tecnológicas e sociais decisivas. Em geral,
historicamente, as previsões apocalípticas subestimam o poder da inovação e da
necessidade. Mas, se os impactos negativos se acumularem, as Metas de
Desenvolvimento do Milênio, definidas pela ONU, no ano 2000, para erradicar a
fome, a mortalidade infantil e as doenças, não serão atingidas. “Se continuar como
está, em 2050 a humanidade atingirá um ponto sem retorno”, diz o biólogo Thomas
Lovejoy, conselheio-chefe de Biodiversidade do Banco Mundial. Em outras
palavras, se o homem não aposentar as tecnologias poluentes e der um ponto
final ao desperdício, era uma vez a biodiversidade. Mais uma tragédia
anunciada.
Estado do
Planeta
Nunca houve tantos e tão
convincentes estudos sobre a saúde do planeta. Aos poucos, os ambientalistas
ganham eloquência para questionar o modelo de desenvolvimento dominante e apontar
correções. De acordo com o Relatório de Avaliação Ecossistêmica do Milênio,
publicado em 2005, que reuniu 1,36 mil especialistas de 95 países para avaliar
o impacto das mudanças ambientais sobre o bem-estar humano, a Terra nunca foi
tão degradada como nos últimos 50 anos. Nada menos que 60%, ou 15 dos 24
serviços ecossistêmicos examinados, têm sido usados de forma não sustentável.
Entre 1960 e 2000, período em que
a economia global cresceu mais de seis vezes, a demanda ligada a serviços dos
ecossistemas – pesca, fornecimento de água, tratamento de resíduos, regulação
climática e qualidade do ar – acompanhou o aumento da população. Enquanto esta
duplicava, duplicou a extração de água dos rios e lagos e a capacidade
hidrelétrica instalada. O volume de água confinada em diques quadruplicou e o
de água retida nos reservatórios já é de três a seis vezes maior do que o dos
cursos d’água naturais. Quanto à produção de alimentos, cresceu 2,5 vezes; a
produção de madeira de corte aumentou mais de 50% e a exploração de madeira
para papel e celulose triplicou.
Desde 1750, a concentração
atmosférica de dióxido de carbono (CO²) na atmosfera aumentou 32%, sobretudo em
decorrência da combustão de combustíveis fósseis e mudanças no uso do solo.
Quase 60% desse aumento foi registrado a partir de 1959. De 1945 em diante,
mais terras foram convertidas em lavouras do que nos séculos 18 e 19 juntos. A
atividade agrícola já absorve quase 70% de toda a água usada no mundo.
Florestas, savanas e manguezais estão desaparecendo em ritmo alarmante. Com a
rarefação da cobertura vegetal, o número de espécies da flora e da fauna entrou
em declínio veloz, aponta o estudo. Nos últimos séculos, a taxa de extinção
aumentou mil vezes em comparação com outras taxas históricas. Segundo o ecólogo
sueco Johan Rock- ström, estamos diante do sexto maior evento de extinção de
espécies da história da Terra (o primeiro foi a extinção dos dinossauros no
período Terciário, que levou à ascensão dos mamíferos). De 10% a 30% das
espécies de mamíferos, aves e anfíbios começaram a desaparecer.
Outro levantamento – o Relatório
Planeta Vivo 2010, publicado pela organização ambientalista World Wildlife Fund
(WWF) – indica que, nos últimos 40 anos, o mundo perdeu 30% de sua
biodiversidade. Nos países tropicais – entenda-se Brasil e a Amazônia em
particular –, a ferida é mais profunda e sacrificou quase 60% da fauna e flora
originais. Comparativamente à última medição do Índice Plane- ta Vivo (IPV),
que monitora a saúde de 8 mil populações de mais de 2,5 mil espécies desde
1970, as conclusões são mais preocupantes: a ação antrópica (derivada do homem)
está superando a biocapacidade do planeta em 50%, o que significa que
devastamos em um ano o que os ecossistemas demoram 18 meses para repor.
Valoração em alta
Se nos contos de fada a
biodiversidade representava a mesa farta que provê a vida ao homem, nos manuais
de subsistência atuais ela nos obriga a aprender a viver. Diante dos flagelos
ambientais que a era pós-industrial impõe ao planeta, a humanidade precisa aprender
a tratar o ambiente como um organismo vivo exposto a uma doença. Mais: entender
que desse metabolismo em reequilíbrio depende seu bem-estar e sobrevivência.
Ainda não deixamos de interferir em paisagens intactas e de dizimar florestas
primárias, premidos pela necessidade de alimentar sete ou nove bilhões de
bocas. Mas, ao menos, já plantamos a semente do basta.
A mudança é sutil, se comparada à
gravidade dos números da degradação ambiental, mas ainda assim é uma inflexão
importante: o homem percebeu que, por trás de nomes científicos de espécies que
nunca verá, se encontra sua própria salvação. Ou, como explica Lovejoy, por
trás do veneno de uma Lachesis muta, serpente conhecida no Brasil como
surucucu, está a fórmula da regulação da pressão arterial dos hipertensos. Da
mesma forma, “enquanto o caramujo rosado garantiu a cura da doença de Hodgkin,
aprendemos que uma substância química da saliva das sanguessugas se presta a
dissolver coágulos de sangue durante cirurgias, e que a casca do teixo do pacífico
oferece esperança às vítimas de câncer de ovário”, escreveu o entomologista
Edward Wilson no livro best-seller de 1992, A Diversidade da Vida. “É por isso
que se deve zelar pelos recursos naturais do globo.”
Mas não só por isso. O homem
constatou que os custos econômicos da extinção da biodiversidade e do
desmatamento são sempre altos e aprendeu a atribuir valor aos recursos naturais
que ainda restam à sua volta, ressalta o ecólogo brasileiro José Galizia
Tundisi, do Instituto Internacional de Ecologia: “Áreas protegidas com
mananciais de boa qualidade precisam de pouco investimento em tratamento. Cerca
de R$ 3 por mil metros cúbicos de água tratada, no máximo. Mas, quando há
desmatamento e degradação dos mananciais, esse custo pode chegar a R$ 300 por
mil metros cúbicos.”
O homem aprendeu que o colapso da
pesca de bacalhau em Newfoundland, Canadá, em 1992, em consequência da
superexploração, resultou na perda de milhares de empregos e custou pelo menos
US$ 2 bilhões em seguro-desemprego. Compreendeu que o surgimento de algas
nocivas em zonas costeiras, como na Itália, em 1989, também por ação antrópica
desenfreada, acarreta prejuízo de US$ 10 milhões ao setor de aquicultura e
elimina US$ 11,4 milhões de receita da atividade turística nacional. E
descobriu que inundações provocadas por erosão do solo causam epidemias de
cólera na Somália, Tanzânia ou em Moçambique. Desmatamento desenfreado.
Segundo o estudo Planetary
Boundaries, coordenado por Rockström na Universidade de Estocolmo, neste meio
século, mais do que ultrapassar três das nove fronteiras planetárias tidas como
“espaço operacional seguro para a humanidade”– clima, biodiversidade e poluição
de fósforo e de nitrogênio –, o que o homem fez foi rever conceitos.
Um deles é o mito da Amazônia. O
desmatamento da floresta se tornou efetivo entre os anos 1960 e 70, quando, em
plena ditadura militar, o presidente Emílio Médici promoveu “a integração
nacional”, doando “terra sem homens para homens sem terra”. Considerada
improdutiva, e assombrada pelo fantasma político da Revolução Cubana, que
instalou campos de guerrilha nas florestas do Pará, a Amazônia passou a ser
sistematicamente degradada. Diante de suas intermináveis distâncias e da
ausência de mercados, prosperaram as atividades produtivas mais
autossuficientes e toscas: de madeira, garimpo, mineração e pecuária.
Resultado: entre 1972 e 2012, a taxa de
desmatamento passou de 1% para 18%. Grandes rodovias, como a Transamazônica,
flanquearam o sacrifício de matas e sua fauna. Entre os anos 1970 e 1980, a
média anual de desmatamento chegou a 19.840 quilômetros quadrados – uma área
equivalente à de Israel. O mundo considera o Brasil um insaciável destruidor de
florestas.
O impacto sobre o banco das
espécies vivas pode ser medido pelo fato de uma única árvore amazônica abrigar
1,7 mil tipos de invertebrados, de formigas a aranhas, de abelhas a besouros.
Só 10% dessa biodiversidade foi catalogada pela ciência, enquanto é das
florestas tropicais que provêm 25% de todas as substâncias usadas no tratamento
de câncer, segundo o Instituto Nacional do Câncer dos EUA. Queimamos um banco
central de inovações químicas.
Não por acaso, entre as riquezas
imediatas, a floresta escondia o maior garimpo a céu aberto, Serra Pelada, no
Pará, para o qual afluíram, no auge da corrida pelo ouro, nos anos 1980, 100
mil garimpeiros, para trabalhar em condições subumanas de higiene e trabalho,
poluindo de forma irreversível a água e o solo. Nesse mesmo período, obras
faraônicas, como as hidrelétricas de Tucuruí, sobre o Rio Tocantins, e de Balbina,
perto de Manaus, foram construídas inundando florestas sumariamente.
Economias toscas geram relações
sociais correspondentes. Nos anos 1990, ainda estarrecida com a repercussão do
assassinato de mais um líder sindical rural, o seringueiro Chico Mendes, em
1988, a Amazônia assistiu a uma nova e assustadora expansão predatória da
pecuária. Entre 1990 e 2007 seu rebanho bovino passou de 26,6 milhões para 70
milhões de cabeças. O ano de 1995 testemunhou um recorde histórico: 29.059 km2
desmatados.
A década culminou com a realização da Eco-92,
no Rio de Janeiro, um divisor de águas na emergência do ecologismo e da sustentabilidade.
No Rio, finalmente, “a biodiversidade foi elevada ao status de problema
internacional”, nota Lovejoy.
Urgência
urgentíssima
Cada vez mais pressionado pela
comunidade internacional, o Brasil registrou avanços desde então: a demarcação
de terras indígenas ganhou fôlego – em 1972, havia 200 mil índios; hoje, eles
são 900 mil, enquanto as unidades de conservação também se multiplicaram pelo
País, totalizando, em 2010, 1.174.258 km2 ou 23,5% do território, contra 28.087
km² nos anos 1970. Uma conquista, sem dúvida. Apenas 13% da superfície de terra
do planeta e 7% dos mares costeiros estão protegidos.
O novo milênio trouxe à Amazônia
feições mais civilizadas: com 24 milhões de habitantes e taxa de crescimento
superior à média nacional, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), a região é hoje alvo de políticas de maior controle do
agronegócio, da mineração, da pecuária e da exploração de madeira. O
desmatamento caiu de 29 mil km2 para 7 mil km² – outra notável conquista.
Recentemente, porém, o modelo
imediatista parece ter ganho contornos sombrios com a atual revisão do Código
Florestal, que propõe uma legislação ambiental mais branda, para surpresa da
comunidade científica. O biólogo Carlos Joly, criador do Programa Biota, da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), considera a
mudança em curso o “pior revés ambiental da história do País em meio século,
com severas e irreversíveis consequências para muito além das suas fronteiras”.
A morte da Floresta Amazônica
pode estar na próxima esquina, admite Lovejoy. “O Banco Mundial encomendou um
estudo para avaliar a possibilidade de a chamada região do Arco do Desmatamento
(que atravessa Pará, Mato Grosso, Rondônia e Acre) desaparecer em decorrência
de um aumento de 2,5ºC na temperatura do planeta, associado a incêndios e
desmatamentos. Os resultados sugerem que o gatilho pode ser uma taxa total de desmatamento
de 20%. Atualmente, o índice é 18%.” O biólogo americano não está preocupado
com acusações de catastrofismo: “Se a temperatura do planeta realmente subir
mais do que 2ºC, a Terra mergulhará realmente na sexta maior extinção em massa
da sua história.”
Engana-se quem projeta a tragédia
para um futuro muito distante. Todas as autoridades científicas são unânimes em
situá-la entre os próximos 50 e 100 anos, se o atual padrão de destruição for
mantido. Se, na maratona pela preservação da sua espécie, o homem mal começou a
correr e a se questionar, pergunta-se, antes de mais nada: vai dar tempo?
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