Muito alem da Economia Verde
Ricardo
Abramovay
Ricardo Abramovay é professor
titular do Departamento de Economia da FEA e do Instituto de Relações
Internacionais da USP, coordenador de seu Núcleo de Economia Socioambiental e
pesquisador do CNPq e da Fapesp. Em um livro resenhado aqui anteriormente, uma
coletânea organizada pelo professor José Eli da Veiga (Economia
Socioambiental), Abramovay, no capítulo de sua autoria (“Responsabilidade
Socioambiental: As Empresas no Meio Ambiente, o Meio Ambiente nas Empresas”),
tocava em uma questão espinhosa e controvertida: quais eram os limites do
capitalismo na construção de uma economia verde?
Ele afirmava que a questão é
complexa e multifacetada. A responsabilidade socioambiental, pilar da criação
de um futuro possível, se referia antes de tudo a uma inversão na perspectiva
que dominou a formação e “o desenvolvimento das ciências sociais desde o século
XVIII”. E fez um convite para que se examinassem “não apenas os impactos do
mercado na sociedade, mas, sobretudo, a maneira como a sociedade produz e
transforma os mercados”.
É este cenário que o autor irá
examinar agora de forma mais extensa. Diz ele: “Apesar da redução
impressionante da pobreza nos países em desenvolvimento, bilhões de pessoas
ainda têm acesso precário ao preenchimento de suas necessidades básicas. Em
quase toda parte aumenta a desigualdade na renda, no uso da energia, nas
emissões, no consumo, na educação e na saúde, ao mesmo tempo que a produção se
expande”. Um caminho, como se vê, para o desastre. A criação de uma nova
economia, como se propaga, afastada da noção do lucro como finalidade única, e
colada na consciência de que ela tem de estar aliada a princípios éticos e
equitativos, poderia levar a um mundo mais limpo, mais justo e mais exequível.
Mas como isto seria feito? Quais são as justificativas para ela? O que a
economia atual nos sinaliza com letras garrafais e tons de urgência?
Abramovay lista, com propriedade,
os problemas mais importantes, com uma pesquisa originada de ampla bibliografia
e de seu saber como professor e pesquisador, e nos mostra que pessoas,
instituições, governos e empresas precisarão passar por um grande e rápido
processo de conversão fundado em uma simples constatação: do jeito que está,
não se pode continuar mais. Apenas nos próximos 20 anos, mais três bilhões de
pessoas terão entrado na faixa de renda que denominamos classe média, com o que
isto significa: um uso muito maior de recursos naturais, ao ponto de ameaçar o
futuro do planeta e transformá-lo em significativa extensão em um lugar
inabitável – e, de muitos modos, para ricos, pobres e a emergente classe média
dos países em desenvolvimento, como China, Brasil ou Índia.
A economia clássica, e a maioria
dos lideres do setor privado e de governos defendem que uma nova economia tem
por missão básica permitir a expansão na oferta de bens e serviços. O aumento
do consumo daí derivado permitiria satisfazer as necessidades das bilhões de
pessoas que ainda vivem em situação de privação material extrema. Não é fácil
contestar a legitimidade destas aspirações, mas elas deixam de lado dois
problemas básicos, diz Abramovay. Primeiro, os limites dos ecossistemas não
autorizam tal crescimento econômico puro e simples. O segundo é que, como
sobejamente se sabe, o vínculo entre a expansão do consumo e a obtenção real de
bem-estar é cada vez menos óbvio – como prova o caso americano, no qual uma
brutal expansão da renda e da oferta de produtos e serviços, sobretudo após a
Segunda Guerra, em nada contribuiu com o sentimento de felicidade,
pertencimento e empoderamento da maioria da população do país. Riqueza, aferida
pelos PIBs das nações, é uma coisa. Vida digna e plena é muito outra coisa.
“Que tipo de vida queremos
levar?” pergunta o autor, ecoando uma questão levantada pelo economista Peter
Victor. Nós podemos seguir acreditando na fórmula mágica de que continuaremos
predando o planeta que proporciona nossa sobrevivência para, com o engenho
humano, consertar as coisas depois, como quer o pensamento econômico
predominante no século 20? Ou vamos encarar o fato de que as externalidades
criadas pela economia baseada neste pensamento está esgotando de maneira
assustadora os recursos naturais e nos encaminhando a um patamar de mudança do
clima que já vem manifestando seus sinais ameaçadores e inequívocos?
Há um limite para a exploração da
Terra. A extração de recursos aumentou nada menos que oito vezes no correr do
século passado, e chegou a uma média de nove toneladas anuais por habitante.
Pior: enquanto um indiano que nascer hoje irá usar apenas quatro toneladas
anuais, um canadense irá utilizar 25, exemplifica o autor. Não apenas está se
mantendo um status quo insano, como estão a se aprofundar as desigualdades. A
saída, prega Abramovay, é uma economia que supõe que a ética, “ou seja, as
questões referentes ao bem, à justiça e à virtude”, tenha papel central nas
decisões sobre o uso de recursos materiais e energéticos e na organização do
trabalho das pessoas. O que se tem que perguntar, e que as ciências sociais em
sua maioria hoje não perguntam, é: produzir e consumir para quê?
Ainda é cedo para saber se a
possibilidade de a economia se transformar sem um rompimento maior com seus
preceitos clássicos é real, e se as tentativas de colocá-las em um trilho
saudável sejam, dado o quadro pouco alentador, uma soma de reflexões tardias.
Há, de fato, um corpo de pensamento expressivo tentando alavancar e impelir
esforços genuínos de sustentabilidade. Os resultados, porém, na prática, são
ainda isolados e pífios. Existe um caminho longo a percorrer, e o trabalho de
Abramovay tem a importância de levantar o quadro e apresentar propostas que,
levadas a cabo, em muito contribuirão para a construção de um mundo que
possamos legar com algum alívio para as gerações vindouras.
Comentário
de Marina Silva
O que há para além da economia
verde? A pergunta parece-me uma boa forma de iniciar o prefácio deste excelente
trabalho do Ricardo Abramovay. E por quê? Mais uma pergunta. Sim, elas são
essenciais e estão por toda a obra, lançadas pelo autor de forma
despretensiosa, mas ousada. Aliás, a despretensão é em si mesma uma de nossas
maiores ousadias. Algumas delas:
“Mas uma nova economia para quê?
Que tipo de vida queremos levar? Qual o significado e o sentido da vida
econômica? Pobreza de quê? Quanto é o suficiente? A desigualdade importa? Mais vale
sempre mais? Se o crescimento econômico não é o caminho para maior felicidade,
então qual é esse caminho?”
De pergunta em pergunta, o autor
vai tecendo ideias e sua compreensão das relações econômicas e sociais. Vai
apresentando conceitos complexos de forma didática e, principalmente, vai
respondendo a cada um dos questionamentos de forma objetiva e consistente.
O pensamento vai sendo construído
seixo a seixo – cada um assentado sobre uma boa e grossa argamassa de dados,
informações e exemplos –, como é típico das sólidas e sofisticadas construções
feitas com pedras não lavradas, onde cada encaixe exige muito mais que a
quantidade mínima de cimento dos rejuntes padronizados.
Uma pergunta, em particular,
chamou-me (mais) a atenção: é possível um capitalismo capaz de levar o mundo em
conta? Primeiro, o autor mostra por que o capitalismo, do jeito como ele
funciona hoje, não leva o mundo em conta. Para isso, vai buscar em Friedrich
von Hayek, prêmio Nobel de Economia, as bases conceituais da economia de
mercado, em que as decisões individuais – tendo os preços como principal
parâmetro de escolha – garantiriam a melhor alocação dos recursos na economia
como um todo. Abramovay sintetiza o pensamento de Hayek da seguinte forma: “O
que promove a coordenação, a cooperação humana não são as ações diretamente
voltadas a esse fim. É um sistema que ninguém controla e que transmite a todos
as informações necessárias a que tomem decisões: o mercado, por meio dos
preços”.
E assim segue mostrando de forma
didática que os mercados são estruturas sociais que podem e precisam fazer isso
urgentemente, incorporar valores ambientais e éticos. E em contraposição às
decisões individuais como elemento de organização dos mercados não está o
planejamento, mas sim a cooperação proporcionada por novas estruturas
comunicacionais. E aí está, no meu entendimento, com toda a licenciosidade
poética, a velha e atualíssima dúvida shakespeariana plasmando as importantes
questões levantadas no livro: indivíduo e coletivo, eis a inseparável equação.
Como não aprofundar o fosso que separa a motivação produtiva, criativa e livre
dos indivíduos com a necessária mediação entre interesse individual e coletivo,
sem o que não há como existir sustentação para o fazer humano.
São processos ainda incipientes,
observa o autor, mas não são, de forma alguma, irrelevantes. Por isso mesmo ele
estimula seu leitor com um extenso rol de iniciativas inovadoras, que passa por
softwares livres, formas alternativas de remuneração da autoria intelectual ou
produção cultural, negócios criativos no mundo da moda, geração distribuída de
energia, sistemas de locação de veículos que rompem com a ideia de propriedade
individual de bens, entre outros exemplos.
É a sociedade assumindo espaços
de governança em um novo metabolismo social, como é definido no livro. Os
instrumentos estão sendo criados, como sistemas de rastreamento e certificação.
Um exemplo importante de que o mercado, cada vez mais, considera, além do
sistema de preços, outros valores. Um exemplo apresentado no livro com a
descrição do acordo firmado entre organizações socioambientais e produtores de
soja para redução do desmatamento em 2006. Nesse caso, o constrangimento ético
provocado pela divulgação em tempo real das informações sobre o desmatamento
pelo poder público foi uma motivação importante para que o acordo ocorresse. Ou
seja, sua livre circulação pode induzir processos fundamentais à economia que
se configura, baseados em valores éticos.
E, para não fugir das perguntas
incômodas, há espaço hoje no mundo para valores éticos? Sim, quando a
humanidade coloca-se diante de seu maior desafio, aquele que pode inviabilizar
sua manutenção como espécie: os limites estabelecidos pela capacidade de
regeneração dos ecossistemas. Como o autor expõe logo nas primeiras linhas da
apresentação, nossa forma insustentável de ser e de fazer já destruiu ou
colocou sob forte ameaça 16 dos 24 serviços fundamentais que os ecossistemas
prestam para a manutenção de nossas atividades econômicas e da própria vida.
Temos dificuldade em lidar com a
noção de limite, pois ela nos coloca escolhas difíceis. Por isso, se
pretendemos manter nossos propósitos éticos de ampliação constante das
liberdades individuais substantivas, como propõe outro prêmio Nobel de Economia
citado por Abramovay, Amartya Sen, precisamos de uma outra economia.
E como seria essa economia? Como
o autor faz das respostas o principal combustível para que o leitor possa, a
partir delas, levantar as próprias perguntas, cito mais um trecho: “Aumentar a
eficiência e reduzir a desigualdade no uso dos recursos: esses são os objetivos
estratégicos de uma nova economia que tenha a ética no centro da tomada de
decisões e que se apoie em um metabolismo social capaz de garantir a reprodução
saudável das sociedades humanas”.
Essa citação contém uma mensagem
que ressalta: a redução das desigualdades é mais que um desejo, é um caminho
necessário. E o autor ajuda a escolher essa via ao apresentar cuidadosamente
extensos dados que demonstram uma imensa desigualdade no uso dos recursos
naturais – como a energia, inclusive dos combustíveis fósseis, além de minérios
– e outros materiais extraídos da terra.
E para enfrentar esse duplo
desafio, o de reduzir as emissões de carbono e o de reduzir as desigualdades,
os ganhos de eficiência nos processos produtivos são fundamentais, mas também
insuficientes. Precisamos nos reinventar e nos reconectar uns com os outros e
com a natureza. Uma relação que redefina felicidade e coloque o bem-estar
coletivo em primeiro lugar.
Uma nova economia precisa de uma
outra cultura, que passa por uma espécie de descontinuidade dos valores
herdados da sociedade de superconsumo e “que não leva o mundo em conta” para o
consumo justo e sustentável que, amparado pela visão de mundo que entende a
sustentabilidade como um modo de ser, um ideal de vida aqui e no futuro, possa
oferecer condições para uma relação mais saudável com o tempo, maior
proximidade com a natureza, a superação do medo de relacionar-se com ela e até
o reencantamento com as pessoas e consigo mesmo.
Para que estejamos dispostos a
essas mudanças, é preciso compreender o sentido daquilo que nos move. O
trabalho do Ricardo Abramovay nos ajuda nessa compreensão, e essa é a força
propulsora que sustenta sua relevante contribuição.
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