O Alarde dos Transgênicos
I
As décadas de 1970 e de 1980
marcaram as grandes transformações por que passaria a biologia com as
descobertas da organização do funcionamento e da variação do material genético
dos seres vivos.
Desse conhecimento decorreram
tecnologias que permitiram, a partir de organismos diferentes, novas
combinações, em laboratório, de material genético estabelecendo-se, assim, um
princípio de intervenção humana capaz de, pela substituição das fronteiras naturais
entre variedades de espécies e, potencialmente entre as próprias espécies,
estabelecer fronteiras tecnológicas tendentes mais à uniformidade do que à
biodiversidade característica do planeta.
As pesquisas em torno do DNA
recombinante, além da revolução instaurada no universo dos estudos da vida,
permitindo o surgimento de novas práticas científicas e tecnológicas que o novo
campo híbrido entre ciência e tecnologia - a biotecnologia - viria depois
consagrar, desencadearam também mudanças profundas no comportamento ético da
sociedade civil diante das novas questões que a manipulação genética de seres
vivos trazia para o homem, ator e autor inconteste do drama redivivo do eterno
Prometeu.
O potencial do que, então, se
descobria, foi tão importante que a própria comunidade de pesquisadores, que
participaram dos experimentos fundadores, tomaram a decisão de declarar uma
moratória científico-tecnológica e de promover a adesão a ela da comunidade
internacional enquanto não se estabelecessem diretrizes e normas seguras para
as pesquisas na área.
A famosa Conferência do Monte
Asilomar, nos EUA, em 1975, formalizou essa decisão e promulgou a necessidade
de se manterem sob rigorosas condições de proteção e de isolamento todos os
experimentos de recombinação genética e os organismos deles resultantes pelo
tempo necessário à produção de certezas de que não seriam nocivos à humanidade
e ao meio ambiente.
Todos esses acontecimentos foram,
curiosamente, muito bem cobertos pela Rolling Stones, publicação radical dos anos
60 e Michael Rogers, num artigo memorável, fez o mais amplo registro dessa
reunião internacional proposta pelo bioquímico Paul Berg, da Universidade de
Stanford, na qual se debateram à exaustão os riscos e as medidas de prevenção,
entre outros, quanto à possibilidade de "criação de novos biótipos nunca
antes vistos na natureza".
As fantasias correram soltas e
como no imaginário psico-social o homem sempre se reencontra com seus mitos,
logo Frankenstein, o médico e o monstro, passeava pelas alamedas receosas do
conhecimento desencadeado e pelo receio da reação em cadeia das forças
liberadas. Os próprios pais fundadores do novo conhecimento, Watson, entre
eles, até pela terminologia dos primórdios, incitavam a imaginação: quimeras,
ou plasmídeos quiméricos, eram assim chamados os novos seres produzidos pela
engenharia genética.
Três anos depois, as coisas
estavam mais calmas e os pavores, que levaram inclusive à rejeição, pela
sociedade civil, de que laboratórios de manipulação genética fossem instalados
em centros urbanos, foram sendo domesticados, até porque nenhum monstro,
mitológico ou não, saiu desses laboratórios.
Nicholas Wade, biólogo e
jornalista, autor do livro A experiência final: evolução feita pelo homem, de
1977, produziu ao longo de 20 anos, para a Science, artigos que são hoje
indispensáveis para a compreensão de todo o processo de descobertas iniciado
nos anos 1970 e que viria, em 1985, com o grupo organizado em Santa Cruz pelo
biólogo molecular Robert Sinsheimer, do Instituto de Tecnologia da California,
culminar no lançamento das bases do que mais tarde viria a ser conhecido como
Projeto Genoma e da própria área de conhecimento, daí derivada, a Genômica.
II
Mas como os mitos falam os
homens, eles estão por aí, antigos, modernos, contemporâneos, entre eles o da
depuração e purificação raciais da idiotice branca da eugenia.
Há outros, alguns deles
positivos, ligados ao ciclo cultural da longevidade, da eterna juventude, da
vida eterna, da ressurreição da carne.
Há também muitos medos reais e
muita atenção da mídia e da imprensa para com os riscos para a saúde das
populações e para o equilíbrio sustentável do meio ambiente.
É que a biotecnologia
possibilitou também alterações importantes no paradigma econômico da
agricultura mundial levando inclusive empresas transnacionais do porte da
Monsanto a mudarem o foco de seus negócios e passarem de produtores de
agrotóxicos a produtores de insumos biotecnológicos.
Em relação à Monsanto, que em
1997 anunciou estar deixando os agrotóxicos, a situação mais famosa, mais
emblemática e mais polêmica é a das variedades transgênicas da soja, chamadas
Round up Ready, desenvolvidas para serem resistentes ao herbicida Round up,
também produzido pela Monsanto.
O Brasil, além de ser um dos
maiores mercados de insumos, é um grande produtor de grãos para o mercado
mundial, desempenhando, nesse cenário, um importante papel na produção de
proteínas e óleos vegetais.
Diferentemente dos E.U.A., os
mercados europeus e outros que são grandes importadores da produção brasileira,
o Japão, entre eles, têm severas restrições à transgênese de produtos
destinados à indústria alimentícia, chamando-os inclusive, pejorativamente, de
Frankenfoods.
Desse modo, aos riscos para a
saúde do consumidor e para o meio ambiente, acrescentam-se os riscos econômicos
que, por normas técnicas dos países importadores, podem desequilibrar
totalmente a balança comercial do Brasil.
A questão dos riscos envolvidos e
acarretados pelos alimentos geneticamente modificados (AGM) ou pelas
intervenções transgênicas em espécies vivas naturais tem sido o ponto principal
de atenção da militância civil de organizações não governamentais (ONGs) e do
esforço de informação e esclarecimento da mídia e da imprensa, de um lado, e de
discussão e avaliações críticas das publicações de jornalismo e de divulgação
científica.
III
Muito pouco se pode, contudo,
fazer ainda nesse domínio. Os transgênicos são uma realidade muito recente, não
havendo ainda literatura estatística ainda consolidada sobre seu uso.
O que se faz é adotar protocolos
de precaução, rotulagem de produtos com advertência de possíveis riscos,
militância institucional e, às vezes, radical contra certos ou todos os usos de
transgênicos, além de dispositivos e medidas que visam ao estabelecimento de
alguma legislação, à criação de normas técnicas e de procedimentos de avaliação
de conformidade, com o objetivo de regular e regulamentar, o quanto possível, o
recurso aos transgênicos na sociedade.
O Brasil tem uma legislação
incipiente sobre o assunto sendo a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
(CTNbio), ligada ao Ministério de Ciência e Tecnologia e criada em 1995, o
principal organismo governamental a ocupar-se da questão.
Entre as atribuições previstas
para a CTNbio está a de "propor o Código de Ética das Manipulações
Genéticas". Parece que isso não foi ainda feito, mas, segundo informações
obtidas junto à Comissão, está no prelo um número da revista Parcerias
Estratégicas, do Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT), através do Centro de
Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), contendo diretrizes para a realização
dessa importante e imprescindível tarefa.
Também no âmbito do Ministério de
Ciência e Tecnologia (MCT), foi criado um grupo de Trabalho para a elaboração
de um documento técnico sobre a situação do país no que concerne às atividades
de metrologia, normalização, regulamentação técnica e avaliação de conformidade
aplicáveis a microrganismos.
O encontro, entre muitos outros
no Brasil, Plantas transgênicas: ciência e comunicação, ocorrido em Curitiba,
no Paraná, no ano passado, e promovido pelo Conselho Britânico com as
secretarias estaduais da Agricultura e do Abastecimento e da Ciência e
Tecnologia, é um bom exemplo das preocupações científicas, tecnológicas, éticas
e sociais que cercam o tema.
O Paraná, como aliás o Rio Grande
do Sul, tem vivido, ultimamente, situações de grande tensão envolvendo
agricultores, cultivares, políticos e instituições governamentais em virtude
das questões de fronteiras geográficas com outros países do mercosul, por causa
da mobilidade e dos redesenhos que as fronteiras tecnológicas imprimem a essas
divisões político-administrativas, como decorrência da própria dinâmica da
expansão dos interesses do capitalismo financeiro internacional e das reações
de resistência por ela provocadas, como as que caracterizam, por exemplo, o
Fórum Mundial Social, de Porto Alegre, já em sua segunda edição.
IV
Ninguém acredita, ou pelo menos
deveria acreditar, que os alimentos que, antes da descoberta da transgênese,
comíamos eram todos encontrados em estado de graça natural.
Batata, milho, feijão e outros
cereais foram sofrendo processos de melhoramento ou aperfeiçoamento genético
que permitiram torná-los não só mais agradáveis ao paladar, como também mais
nutritivos e, em alguns casos, transformá-los de venenosos e nocivos à saúde em
alimentos ricos e saudáveis, como é o caso da batata e do próprio feijão.
Mas com os transgênicos a coisa é
um pouco mais complicada porque, além dos saltos biotecnológicos de qualidade,
para o bem ou para o mal, a tendência, como dissemos, é para uma uniformização
das variedades e, dentro dela, em alguns casos, do controle do próprio
princípio de fertilidade das sementes, uniformizando, pelo monopólio da
tecnologia, o controle econômico das lavouras, dos cultivares e da produção
agrícola onde quer que ela se dê. A operação transgênica conhecida como
Terminator esteriliza as sementes impedindo que se produzam, para um segundo
plantio, novas sementes a partir das que são compradas para a primeira lavoura.
Os argumentos de que a fome
cresce no mundo e de que a produção tradicional de alimentos não é capaz de
atender as necessidades das populações crescentes dos diferentes países do
globo são frequentemente usados pelos defensores das modificações transgênicas.
Argumentos comuns são também os que apontam para a eficácia de tecnologias, por
exemplo, através de modificações genéticas do milho, que dariam também ao
alimento propriedades anticoncepcionais que muito contribuiriam, a baixo custo,
para o controle da natalidade em países pobres, em desenvolvimento ou
emergentes, como quer a cartilha e o vocabulário dos agentes e instituições
financeiras da nova ordem econômica global.
O fato é que, mesmo havendo
riscos, cuja extensão e qualidade são ainda difíceis de serem medidas, se o
país não se prepara adequadamente para o domínio da biotecnologia, mesmo quando
sua economia, como é o caso do Brasil, depende muito de sua produção agrícola
convencional e, às vezes, também de sua produção orgânica, mesmo nesse caso em
que é sempre preciso atestar a não contaminação por transgênese dos produtos
exportados, é imprescindível, não fosse apenas essa razão negativa, que, como
em todo processo de desenvolvimento tecnológico e de inovação, o país saiba
dizer "não" pelo pleno conhecimento da melhor entre as alternativas
postas, e ponha alternativas novas e positivas ao que lhe é apresentado como
impositivo, porque único.
A biotecnologia no Brasil tem um
cenário de sucesso amparado pela rica biodiversidade que nos é própria e quase
sem similar no mundo. A transgênese é um capítulo importante da biotecnologia.
Conhecê-la e dominá-la é fundamental. Mas o livro é maior e certamente mais
cheio de outras boas surpresas além das que se encontram concentradas em estado
de alarde nos textos merecidamente ruidosos dos transgênicos.
Fonte: www.comciencia.br
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